As trilhas de uma queda livre

por Ania Chala*

As histórias que Stela Rates apresenta em “Queda Livre” (Porto Alegre: Metamorfose, 2018, 100 p.)* vão do choque ao espanto de quem descobre uma lembrança de amor perdido cuidadosamente guardada em uma caixinha de fósforo. Misturando relatos doloridos de infâncias subitamente atravessadas pela morte, pelo destino ou pelo desejo com recordações de adultos que já não distinguem o presente do passado, os 17 contos do livro de estreia dessa professora da Faculdade de Farmácia da Ufrgs nos conduzem por trilhas repletas de gentes, lugares e bichos. Amor, descoberta, luto, desalento e saudade aparecem em narrativas curtas, e nem por isso menos densas. “Laços e Nós”, o texto de abertura, traz uma epígrafe que reflete sobre o quanto os seres humanos são capazes de cometer coisas terríveis uns contra os outros: o relato de uma aproximação é narrado com delicadeza, e o leitor, embalado por um jogo de persistência amorosa, levado a imaginar um desfecho que se desfaz de forma irremediável.

No conto “Os reinos desse mundo”, as memórias de uma mulher madura com o sono picotado pelos desacertos hormonais vagueiam do Haiti à Normandia e terminam numa residência na zona sul de Porto Alegre. Em “Insone”, ela relembra as mudanças de casa, o crescimento dos filhos e as saudades de um gato, companheiro que conquistou um lugar em seu coração lhe fazendo companhia nas madrugadas de trabalho.

“Carne Crua” descreve a desordem provocada pela partida daquele que tudo organizava em uma família interiorana. Essa ausência, entristecedora e paralisante, acaba por traçar o destino de um cão.

Por fim, em “Para uma guria com uma Flor”, mulher e menina dialogam em uma mesma dimensão tornada possível por uma carta - forma de comunicação hoje tão pouco exercitada - em que uma conta à outra sobre conquistas e derrotas vividas e por viver. Nesse relato ambas parecem questionar: afinal, o que mesmo se aprende com o tempo?

A experiência da pesquisadora acostumada ao ritmo do mundo da ciência é colocada a serviço da autora que testa palavras, revelando um elaborado processo ficcional. Os contos são entremeados por fotografias em preto e branco também produzidas por Stela, criando possibilidades de leitura que ultrapassam a narrativa escrita. Assim, ela nos mostra que do ambiente dos laboratórios de onde brotam experimentos também pode surgir boa prosa.

* Jornalista da UFRGS. Doutoranda em Memória Social e Bens Culturais pela Universidade LaSalle.

Publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, dia 8 de dezembro de 2018


09/12/2018