Como assim beijar espelho?

por Regina Silveira

A 64ª. Feira do Livro traz a gente num cortado. Não dá para assistir nem a um quinto do que se pretende. Ler os lançamentos, então, mesmo selecionando-os na tua área, nem pensar. Há quem tente acompanhar, entre pessoas que vêm de longe e pessoas que estão muito perto da gente. E ainda tudo no mesmo dia. Das pessoas que estão muito longe, li Scholastique, de quem já falei aqui. Das que estão perto, terminei agorinha o ”Ele Sabe”, da Jane Tutikian, editora Metamorfose, do Marcelo Spalding.

O que vou dizer aqui é uma palhinha, não é uma resenha acadêmica do livro infantojuvenil. Preciso falar por que o João e o Zeca estão pulando dentro e fora de mim. Por motivos vários. O assunto foi além. E fosse aqui uma resenha eu diria que foi catártico o negócio. São dez minutos de diferença entre um e outro. O Zeca, protagonista, o que nasce antes, dorme na parte de cima do beliche, dividindo-o com o irmão gêmeo.

O livro remete a leituras, intertextos para tratar na resenha, evidenciando que por serem as primeiras na vida da gente são as que sempre ficam; leva de volta para a sala de aula a profe aposentada que lê, com saudade, a parte em que os jovens se revelam nas suas primeiras investidas, o “ficar”, com os hormônios a mil, tema já abordado por Jane em obra anterior. E nisso se vê como é interessante uma revisão do que se passa entre a gurizada, coisa que não é fácil pra gente adulta, porque essas dificuldades remetem às lutas e incertezas que deixamos para trás, como quem não remexe em caroços e cascas.

Mas. E esse “Mas.” tirei do livro. Depois vêm as lutas de vídeo game pela ótica dos jovens jogadores, “como se fosse tudo verdade. Não é. Mas. Também é. Virtual, mas é.” Pois aqui o encontro é com Fernando Pessoa, poeta fingidor, verdadeira Autopsicografia, não sendo.

Tem muito o que dizer sobre as coisas intensas neste “Ele sabe”, livro inegavelmente de uma grande escritora, a mulher do Tuti, a vó da Duda e do... Deixa pra lá!

Das leituras do grupo de amigos, das relações com a vó do amigo no condomínio, do jogo de bola de meia (E quem não viu a foto da autora jogando bola de meia com a fofura do neto há uns dois três anos aqui no facebook?).

“Há malas que vêm pelo trem”. Ainda! O dar-se conta de que existe o manual de mãe e pai, o que todos eles dizem...

Aquela reflexão sobre o pai que abandona a casa: o seu Joaquim que abandonou a Dona Maria que arrasta os erres, agora ou sempre cabeluda e braba. Olha, não vai dar pra contar tudo aqui.

Mas. Depois, tem aquele lance da modéstia versus narcisismo de “As estrelas, agora, não eram aquelas estrelas, eram outras. Éramos nós e as coisas que fazíamos.” E no novo parágrafo: “Quer dizer, não só nós. Havia outros também. Mas nós éramos mais do que eles. Quer dizer, de novo, nós assim comigo, não. Assim, só nós. Às vezes, na maior parte das vezes, sem mim.” Que dilema! Guimarães Rosa diria: “Não seja tão humilde, você não é tão importante.”

Entre a gurizada, bom é saber que “amigo é aquele que sabe tudo sobre ti e continua sendo teu amigo”, para dizer que um espelho é quase sempre mais do que perverso.

***

P.S.: Eu fui gêmea, minha irmã morreu na hora do parto. Ainda que tenham se passado 65 anos aqui pra mim, fico curiosa e tensa sempre que se fala em gêmeos. Zeca nasceu 10 minutos antes que o irmão. Eu nasci antes que minha irmã que nasceu morta. João sofre acidente grave. Eu fiquei agarrada neste livro, 3 da manhã, na porta do hospital junto com a mãe, o pai, o Zeca e os amigos, esperando notícias do João, pensando com eles que “o para sempre é o que nunca termina”. Também me segurei na mão do Zeca, passei a mão no rosto da Dri. Que alívio, pensar que Zeca chorou de alegria. Afinal, o que é que Ele sabe, hein?


16/11/2018