Bruna Tessuto
Uma das atuações mais impressionantes que já presenciei. Um dos textos mais potentes que já ouvi. Uma das direções mais acertadas que já testemunhei. E o casamento entre os três dói.
Celina Alcântara, protagonista do espetáculo, ou da peça-manifesto, como a equipe prefere chamar, foi minha professora (e posteriormente paraninfa) no Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Diones Camargo, que assina a dramaturgia, foi meu colega por lá, assim como Pedro Nambuco, que atua também no trabalho. Adriane Mottola, a diretora, eu nunca conheci oficialmente, mas todo mundo que é da classe artística de Porto Alegre sabe quem ela é.
Sendo sincera, não foram esses os fatores que me tiraram de casa em um domingo de chuva para assistir "A mulher arrastada". Também não foram os diversos prêmios e indicações. Ao comprar os ingressos para o Porto Verão Alegre, escolhi "A mulher arrastada" principalmente porque sabia que se tratava de arte enquanto denúncia. Enquanto grito. E eu acredito demais em tal tipo de trabalho.
Era 16 de março de 2014 quando Cláudia Silva Ferreira, depois de ser baleada pela Polícia Militar, foi arrastada, ainda com vida, por cerca de 350 metros ao cair de uma viatura. As imagens, feitas por um cinegrafista amador, chocaram. Ela ficou ralada. Em carne viva. Sendo que tinha saído de casa só para comprar pão para os filhos, quatro biológicos, quatro adotivos. Neste domingo de chuva de 2024, quase dez anos depois da tragédia, presenciei Celina emprestando sua voz para Cláudia poder falar. "E se chegarem mais perto ainda conseguirão ver até mesmo parte dos meus ossos ralados. Foi assim que meus familiares me encontraram. E é assim que vou ser vista pelos meus amigos, marido e filhos quando eles forem se despedir de mim no enterro daqui a pouco."
O fato do nome da vítima não ser citado ao longo da apresentação me fez pensar sobre o fato dessa mulher ter perdido sua identidade e se transformado na mulher que morreu arrastada. Mas também me fez lembrar do conceito de personagem transindividual, que é aquele personagem que representa um grupo. No caso, uma mulher preta, pobre, semialfabetizada, que só tinha seis reais no bolso para comprar pão e mortadela. Foi Cláudia, mas poderia ter sido qualquer uma dentro desse contexto.
Em cena, através do texto de Diones, da direção de Adriane e ao lado de Pedro, Celina grita a dor. A cada grito, uma faca parece que perfura o estômago e o peito de quem assiste e ouve. Professora de voz na UFRGS, a atriz sabe exatamente usar a potência vocal para fazer os desenhos que o texto pede. Sabe como fazer cada palavra nos perfurar ainda mais.
O formato de arena como escolha não me parece casual. Não existe a parede imaginária que separa público e plateia. A personagem-vítima conta e grita olhando nos nossos olhos, aumentando a sensação de que estamos ouvindo um relato. O fato das cenas acontecerem no meio e com o público ao redor permite também que a gente observe as reações das pessoas assistindo. Tinha gente com cara de dor, tinha gente com as sobrancelhas franzidas, tinha gente com a mão no peito. E tinha muita gente chorando.
Ao final, antes dos aplausos, um silêncio necessário. Era quase como se ninguém conseguisse se mexer nem para aplaudir. Na saída, quando cruzei com o Diones, só consegui olhar pra ele e dizer um "puta que pariu, cara."