EU HOJE NÃO VOU DECLINAR A FONTE

Marta Leiria

Quando eu era mais jovem, sentia um certo desconforto na presença de determinadas pessoas, era como se elas simplesmente não me agradassem. Mas eu desconfiava não ser só isso, era algo bem maior. E difícil de admitir. Com uns bons anos de análise na cabeça, leituras e mais leituras, conversas e mais conversas - autoconhecimento - vejo que não me sentia à altura dessas pessoas. Algumas eram vaidosas, e alguns tipos de vaidade feriam a minha própria vaidade. Era o espírito de Caim me rondando, hoje eu sei bem. Agora reconheço em mim, e no outro, a inveja. Como dizer isso em voz alta?

Leio textos geniais e penso: eu queria ter escrito isso... se pudesse. Mas aí é quase sempre um sentimento diverso que me surge, de pura admiração. Então é possível dizer isso em voz alta!

Li sobre um homem que tratava um quati como cachorro, levando-o pela coleira e desvirtuando-lhe a natureza. E vi a amiga que mudava o modo de ser e de vestir para que seu homem não a reprovasse em público por ser espontânea, renunciando à própria individualidade. E fiquei tão triste! Como dizer isso em voz alta?

Observei alguém que, talvez por precaução, raramente elogiava outra pessoa (além da própria mulher). Um dia teceu longos e justos elogios ao morto. E pensei: só o morto era, a seus olhos, possuidor de virtudes? Ou elencar qualidades só era possível porque, na morte, não poderia mais decepcionar o elogiador? Como dizer isso em voz alta?

Em uma prova de Direito Civil, declinei todas as fontes, lições de juristas de escol, para fundamentar minha resposta. O professor, desses genuínos educadores, que não pregam verdades, e mostram os vários lados de questões difíceis, e de quem sinto tantas saudades (rimou), estampou no papel a frase: E a colega, o que acha? Eu tinha me perdido de mim mesma. Não tive, ou não revelei, minha própria opinião, o que para ele não servia. Santa e inesquecível lição. Não lembro se cheguei a dizer isso a ele em voz alta.

Há alguns anos, em artigo da Zero Hora, disse que gostaria de estar equivocada, mas constatei que havia manifesta militância, se não político-partidária, no mínimo ideológica, grassando incólume na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e escrevi: quem tem amor ao verdadeiro significado da palavra filosofia, aos grandes debates acadêmicos e à liberdade de pensamento, como eu, está de luto. E pude dizer isso em voz alta!

Pensei em falar com quem aprendi isso e aquilo, mas meu texto ficaria repleto de notas de rodapés e eu na verdade já introjetei essas ideias como minhas e então eu me recuso a declinar a fonte. E precisei dizer isso em voz alta!

E como toda regra tem sua exceção, resolvi contar um pouquinho só do que aprendi, e continuo a aprender, com o professor de economia Thomas Sowell, que poderia ser de qualquer cor, mas que, por acaso, é negro. Na obra CONFLITO DE VISÕES, ORIGENS IDEOLÓGICAS DAS LUTAS POLÍTICAS, entendi porque a visão restrita e a visão irrestrita levam a entendimentos opostos, e irreconciliáveis, em relação ao que se entende por justiça, igualdade e poder. Se para ambas as visões, parece claro que igualdade de oportunidades seja necessária, a natureza de resultados socialmente justos é preocupação essencial da visão irrestrita. Para o autor, muito do que a visão irrestrita vê como moralmente necessário a ser feito, a visão restrita vê como impossível ao homem fazer.

Dia desses, assisti a depoimentos de jovens negros se questionando porque nunca ouviram falar nesse intelectual de primeira grandeza, embora conheçam rappers e atletas de sua mesma cor. Questionavam o porquê de os educadores não contarem sobre a trajetória incrível de Sowell, que tinha chegado à Universidade, e em quem poderiam se espelhar. A resposta? A Academia não tem interesse em mostrar negros bem-sucedidos, que abriram seus próprios negócios, ou foram a Harvard. Com extremo esforço pessoal, chegaram lá. Por que esconder tudo isso?, se perguntam indignados, e com inteira razão, os jovens negros. Sowell revela: A pergunta que deve ser feita aos educadores, especialmente àqueles que se veem como agentes de mudança social, ainda que esse não seja o trabalho para o qual foram contratados, é: a quem você deve primeiramente lealdade, ao seu público ou à sua ideologia?

Lembrando daquele grande professor que tive, avesso a militâncias e dogmas, fiz questão de dizer tudo isso em voz alta!

 

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