Motivo

Denise Accurso

Eveline sempre teve muito orgulho de suas raízes germânicas. Seus avós atravessaram o oceano e se instalaram no outro lado do mundo, no sul do Brasil, para recomeçar. A Alemanha do pós-guerra estava economicamente falida, eles queriam construir um futuro melhor para a família, esquecer os horrores da guerra e do nazismo.
Ouvira e repetira tantas e tantas vezes essa história! Da chegada, das dificuldades iniciais de comunicação, do encontro com colônias alemãs, do trabalho duro. Um dos avós começara como transportador de verduras, outro no cabo da enxada mesmo. E assim fora a luta deles.
Gostava tanto dessas memórias que se graduou em História. Não perdia oportunidade de conversar com os antigos. Organizou uma árvore genealógica da parte da família que viera para o Brasil e acalentava o projeto de viajar à Alemanha e aprender mais.
Resolveu organizar um encontro de família, dos dois patronímicos que compunham seu nome. Foi nessa época que prestou mais atenção a um fato de que já tinha conhecimento: um dos parentes, primo do seu avô, embora tenha emigrado quase na mesma época, mantivera-se afastado de todos. Diziam que era estranho desde jovem e devia ter se transformado num velho neurastênico.
Decidiu procurá-lo e convidá-lo pessoalmente para a festa. Tentaram dissuadi-la:
– Ele é um esquisito. Não quer aproximação conosco, melhor não forçar.
– É capaz de não te receber bem. E duvido que venha.
Eveline não entendia, pedia explicações:
– Como podem ter certeza depois de tantos anos? Aconteceu alguma coisa com ele?
Olhares se desviavam, respostas não vinham. Apenas a insistência de que não era boa deia Eveline procurar o parente distante. Ela não se deixava convencer:
– É justamente pra trazer aquelas pessoas mais afastadas que inventei a festa! Até anunciei no jornal e em redes sociais.
– Mais um motivo pra não ir até lá. Ele vai ver. Se quiser, que venha!
Ela não se deixou convencer. Complementou os dados de que dispunha, conseguiu o endereço e empreendeu a viagem de pouco mais de cem quilômetros em busca do primo.
Chegou defronte à casa de madeira, bem pintada, com um jardim florido, no estilo inconfundível das residências de imigrantes alemães. Sentiu-se insegura: será que devia bater e contrariar o desejo de afastamento daquele senhor desconhecido? E se não fosse bem recebida? Pior: e se não fosse recebida? “Não vim até aqui pra dar uma olhada na casa. Vamos lá!”
Bateu à porta e uma senhorinha de cabelos brancos presos num coque e um sorriso a atendeu:
– Pois não?
– Aqui mora o Seu Inácio?
– Sim, é aqui mesmo. Quer falar com ele?
Admirada com toda aquela facilidade, Eveline deu seu melhor sorriso:
– Quero!
Guiada pela senhorinha, entrou e sentou numa sala pequena, limpa e excessivamente enfeitada com toalhinhas de crochê, quadros de santos e bibelôs. Logo ele veio, muito curvado, apoiado na bengala, e estendeu o braço livre, apertando-lhe a mão.
Ele e a senhorinha – sua esposa, obviamente – sentaram-se e ouviram sua explicação acerca do motivo daquela visita. Quando ouviu a menção aos parentes, a expressão do Seu Inácio alterou-se. De afável passou a sério e quase hostil. A mulher apertou seu braço com as duas mãos, como se pedisse calma. Com um sorriso nervoso, ofereceu:
– A prima veio de tão longe, aceita um cafezinho?
E saiu da sala. Ficaram Eveline e Seu Inácio.
Ela, percebendo estar em terreno delicado, decidiu não recuar.
– Eu não sei o que aconteceu entre o senhor e o resto da família. Não precisa me contar, se não quiser. Mas, depois de todo esse tempo, será que não dá pra deixar pra lá? Eu ficaria muito feliz de conseguir reunir todos. Se o problema for a distância, faço questão de buscar o senhor e sua esposa. Filhos e netos, se o senhor tiver, também estão convidados. Apenas preciso dos nomes e da confirmação de presença…
Ele não parece estar prestando atenção. Chega o café. Ele diz, sem hostilidade:
– É melhor tomar o café e ir embora. Melhor pra ti.
A suposta grosseria passa em branco por todos.
– Mas por quê? Que motivo pode ter pra não querer conhecer os parentes nascidos aqui, que nunca lhe fizeram nada?
O velho endurece o queixo e se estica.
– Não quero confraternizar com nazistas.
Ela não entendeu. Como assim?
– Eles não te contaram que apoiavam o Hitler? Que achavam que ele era o salvador da Alemanha? Teu avô nunca te mostrou as fotos dele na Juventude Hitlerista?
Eveline estava atônita. O velho percebeu e suavizou a voz.
– Meus pais sempre se opuseram àquela loucura. E a família nos virou as costas. Eu nunca vou esquecer.
A viagem de retorno foi sombria. Eveline tinha uma caga de chumbo em seus pensamentos. Todas aquelas pessoas, tão amorosas, tão esforçadas, tão corretas… Nazistas? Havia notado na velha geração uns resíduos de racismo, coisa que sempre tentava combater. Mas isso? Como voltar? Como encará-los?
Depois, os pensamentos a levaram para terrenos mais sombrios. Sou neta de nazistas! Toda minha família, o sangue que corre nas minhas veias… Oh, meu Deus!
Parou o carro. Chorou.
Depois, deu-se conta que preconceitos não são hereditários. Não era nazista, jamais tivera a mínima simpatia por qualquer ditadura totalitária. Essa carga não era sua.
Já dirigindo, continuava a pensar: “e se eu jamais tivesse ido procurar o Seu Inácio? E se eu jamais descobrisse? Nada mudaria no que sinto. E, sentindo o que sinto, que diferença faz? Vale a pena confrontá-los depois de tantos anos? Eles apoiaram um ditador louco e sanguinário. Será que sabiam disso? Metade dos alemães daquela época apoiavam Hitler. O partido católico o apoiou!”
Toda aquela raiva e revolta foram se amenizando. Os avós tinham sido ótimas pessoas durante toda sua existência. Rígidos, mas generosos, nunca tiveram qualquer atitude cruel ou coisa assim. O que tinha acontecido antes de seu nascimento… Será que lhe dizia respeito? Valia a pena confrontá-los, remexer nessa velha ferida, que eles talvez repudiassem? Poderiam ou não estar arrependidos – isso não lhe dizia respeito. Tinha que lidar com essa vida com eles, com a nova vida que construíram. Seria diferente se fossem criminosos de guerra. Não podia renegá-los por um erro de julgamento.
A festa foi um sucesso. Seu Inácio não foi.

 

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