A MÃO

Marta Leiria

O fato de nossos pais tentarem dissuadir a mim e minha irmã da ideia de que lobisomens existiam não nos fez desistir da busca. Medo de entrar na mata fechada? Claro! Medo das jaguatiricas, das cobras, de nos perder. E de sermos, em algum clarão, atropeladas pelos cavalos selvagens que habitavam os campos do Piquiri, em Cachoeira do Sul. Júlio, o avô paterno, falava que antes eram cerca de quinhentos, mas, com o avanço das plantações de arroz, o número diminuiu bastante. Como ele gostava de nos contar histórias! Os caseiros Pequena e Milton diziam já ter visto o José nesse estado deplorável, transfigurado. Provas concretas? Não tinham e nem pretendiam convencer ninguém.

Nos finais de semana do verão, toda a família se reunia em volta do fogão à lenha para saborear feijão, mogango caramelado, canjiga doce e outros quitutes preparados pela vó Norica. Adorávamos colher amora e butiá do pé, tomar banho no açude e, claro, cavalgar. Na sexta-feira, véspera do final de semana em que toda a família estaria presente, poderíamos matar a saudade dos primos. Era preciso que o tempo passasse logo e nos entretemos com os cavalos o dia inteirinho. Sabia onde o pai guardava a máquina fotográfica, dispensei a autorização e fui me ocupar do registro do que víamos pelo caminho: flores, árvores, pássaros. Eu era melhor nessa parte, e minha irmã, na condução dos cavalos. Eu ficava sempre para trás tentando, em vão, acompanhar seu destemido passo. Fomos até a venda buscar farinha e melado a pedido do vô. Essa mistura era das nossas sobremesas favoritas, ao lado das rapadurinhas de leite e da goiabada com queijo preparadas pela vó.

Quando o dono do armazém nos alcançou a farinha e o melado, uma mão muito estranha pousou sobre o balcão e largou ali umas notas amassadas. Era toda retorcida, parecia um galho pronto para se desprender da árvore, bem distante da forma natural do membro do corpo, com uns chumaços de pelos escuros. As unhas, compridas, afiadas e pretas por baixo. A noite se avizinhava e, embora os lampiões já estivessem acesos, não dava para ver direito o que era. O dono da venda falou baixinho: “Vê lá o que tu vai fazer, José! Amanhã cedo a lua cheia já se foi e tu vai te arrepender, não te esquece do julgamento no Juízo Final!”. O resto não ouvimos bem, mas era sobre galinha ao molho pardo. E jogou ali em cima a ave ainda quente que acabara de matar, cortando o pescoço bem na nossa frente. Ficamos atônitas, nunca tínhamos encontrado com o José. Embora com o corpo inteiro tremendo, não podia sair dali assim, sem a prova. Ao fazer menção de pegar a máquina fotográfica, aquela mão estranha tocou de leve na minha. E uma voz que parecia vir das profundezas disse: “Não”. Corremos aos tropeços dali. Encontramos nossos cavalos em polvorosa, como se tivessem visto algo de outro mundo. Mas apenas o silêncio se fazia presente lá fora.

 

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