De pai pra filho

Marcelo Spalding

Ele atende. A voz rouca manda descer. E rápido. Desliga antes de ouvir os palavrões. Respira fundo. Ajeita os enfeites sobre a cômoda, põe o revólver entre as calças e o sobretudo. Limpa uma mancha do espelho. Já na porta, calça sapatos pretos recém lustrados. Desce os degraus sem pressa. Ajeita o tapete. Lembra de fazer um sinal da cruz antes de sair para a rua.

Carlos sempre foi um bom pai. É verdade que não conseguiu conversar com o filho sobre sexo nem vestibular, ensiná-lo a jogar futebol, ver sua primeira peça de teatro e nem o rosto da primeira namorada. Mas era um bom pai: bem-sucedido, bem-humorado, bons presentes no aniversário e Natal. Pouco se viam e por isso pouco brigavam. Um dia o jovem pediu um dinheiro. Mil reais.

Ele sai. O carro verde-escuro o espera. Dentro, vê o contorno de um homem. Entra quieto. Um cumprimento seco mostra que já se conhecem. O carro parte deixando marcas no chão. Ele fuma. O cheiro irrita o que dirige. Apaga o cigarro e fica juntando as cinzas da calça. O outro ri. O chama de puto.

Mil reais para Carlos não era nada. Usou o limite de uma das contas. Não pediu nada em troca, mas se sentiu no direito de fazer uma coisa que há anos desejava: arrumar o armário do filho. Começou dobrando as camisetas, ordenando por cores, tamanhos, estações. Depois as cuecas. Jogou algumas fora, estranhou a ausência de camisinhas. Quando chegou nas meias, um susto.

O carro pára. A rua é escura. Descem. Carlos sente frio, esfrega as mãos, vai em frente. O cheiro começa a ficar bom. Seguem até uma porta de ferro. Batem três vezes. Não demora para abrir. Entram quietos. Assustam-se, a porta fecha num estouro. A voz rouca tenta uma piada. Os outros riem, Carlos não. Está preocupado com o suor que começa a sujar suas roupas. Esquecera de pôr desodorante.

Junto com as meias estava o telefone de um velho conhecido de Carlos. Ele não acreditava que o filho estivesse metido naquelas coisas. Não podia acreditar. Hesitou, mas tinha de tomar uma atitude: pegou o carro e foi na boca de fumo. Era lá que comprava o bagulho quando era novo. E lá encontrou o velho conhecido. Mas era tarde. Ninguém sabia do rapaz, tinha desaparecido deixando uma dívida de dez mil.

Os caras notam que o cheiro dele não é o de sempre. Perguntam o que houve. Seus olhos tremem. Alguém fala: – Porra, Carlos, trouxe ou não a grana?

Dizem que o próprio cara da boca de fumo o matou por causa da dívida. Por dois meses Carlos ainda continuou arrumando o armário à espera da sua criança, daria uma lição exemplar àquele moleque. Dividiu os casacos em novos e velhos, escondeu os bonés e os óculos escuros, juntou as calças com as camisas do pijama. Mas Carlos nunca mais viu o filho. E prometeu se vingar: voltaria a consumir o bagulho apenas para se aproximar dos caras e, na primeira chance, matava eles. A mulher não se importou.

Carlos pede para ficar a sós com o chefe, não gosta de fazer negócio com gente em volta. Os outros saem e vem o Cara. Carlos ajeita a calça. O Cara é o único que sorri naquele lugar. Recebe Carlos com um abraço, conta do fuzilamento de um mauricinho que tinha dedado o esquema pra polícia, fala de presos, armas, negócios. Carlos põe a mão na calça para ter certeza de onde está o gatilho. Disfarça, reclama da bainha mal feita. O Cara só responde uma coisa: seu Puto.

Carlos começou comprando o pó e jogando fora, assim ficou amigo de um dos caras. Mas achou melhor usar o pó para fingir melhor. Planejou a vingança em três meses: iria propôr sociedade ao Cara, seu amigo da boca de fumo e, no dia de fechar o negócio, só eles na sala, tiraria do casaco em vez da senha do banco, uma arma. Talvez morresse junto, mas levaria com ele o canalha que matou seu filho.

Agora que o Cara está em sua frente, Carlos hesita. O Cara diz:

– Vi teu filho – traga devagar, olha nos olhos do outro – o moleque tá com a turma do outro lado. Quero que tu saiba porque, se nós precisar, vamos matar ele junto. Virou inimigo, entende?

Três meses foi tempo demais. Devia ter procurado melhor, se importado mais. Não só nos três meses, nos dezoito anos. Carlos tira a arma. O Cara não se assusta. Pensa num fim, mas não pode levar sua vingança adiante. O Cara oferece ajuda. Só vingaria o filho matando a si próprio. O Cara põe a mão no seu ombro. Carlos prefere trocar a arma pelo pó, a vingança pelo vício e a esposa pelo suicídio lento. No inferno daria uma lição no filho. Pelo pó e pela bagunça do armário.

 

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