Diabo verde

Denise Accurso

A gritaria já tinha começado. Eu precisava me esconder para poder fingir, depois, que não vi nem ouvi nada. Tudo exatamente como das outras vezes. Isso já aconteceu antes. Passa. Sempre passa. Preciso me acalmar e me esconder. Vai ser como sempre. Vai passar.
Escondo-me entre a pia e o fogão. Puxo a lixeira de volta para seu lugar e pronto: sou invisível. Começo a contar até cem, tomando cuidado para só mexer os lábios, sem fazer nenhum barulho.
Não consigo evitar e dou uma espiadinha. Lá está mamãe e o outro papai. Aquele não é mesmo meu pai, é o diabo verde. A primeira vez que eu vi foi na área de serviço, ele se transformou nesse monstro bem ali, na minha frente. Eu era muito pequeno e isso nunca tinha acontecido, então eu não sabia que precisava me esconder. Foi horrível! Até hoje sonho com aquele dia. Nunca falei disso com ninguém, nem com a mamãe. Não sei se ela ia concordar com o nome que dei ao monstro. Ela o chama de outros nomes, muitos nomes feios.
Ele depois foi embora e ficou o meu pai de sempre. Demorou pra voltar. Quando voltou, eu atinei sair de perto e me esconder, mas ele me viu, saiu atrás de mim e conseguiu me pegar. A mamãe tentava nos separar, e gritava: “com ele não! Com ele não!” Não adiantou, foi muito ruim, até tive que enfaixar o braço.
Depois disso aprendi a ver quando o monstro vem chegando e fujo, me escondo. Só volto depois, quando ele foi embora e o papai está lá, chorando, decerto apavorado de ver o quanto o diabo verde machucou a mamãe. O pai sempre a socorre, sempre a ajuda, faz carinho, chora muito e diz coisas bonitas pra ela. Teve uma vez que até faltou ao trabalho pra cuidar da mãe. Meu pai é bom, não tem culpa. O problema é esse diabo verde.
Os gritos continuam, minha mãe chora, diz que vai chamar a polícia. Aquela voz horrorosa do diabo verde diz que se ela fizer isso ele me mata e depois se mata. Vejo que ele está batendo nela com uma garrafa. Deve doer muito. Coitada da mamãe! Sei que não consigo ajudar, mas queria poder pelo menos pedir pra parar. Só que não tenho coragem… Ainda.
Mas um dia eu vou ser grande e não vou mais me esconder. Vou lutar com esse diabo e expulsar ele de casa. E nós vamos ser felizes para sempre.

 

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