Velho Louco

Denise Accurso

Acordei.
Apoiei-me no cotovelo e espiei para fora do buraco que havia cavado para passar essa noite. Estava bem mais fresco, cerca de 36 graus. Pelo avermelhado do céu, calculei que fosse cerca de 4 da manhã.
Eu havia acordado bem a tempo! Hoje era dia de água.
Abandonei meu buraco e tentei me orientar na escuridão. Na véspera, escolhera descansar entre as duas montanhas de lixo. Teria que escolher uma delas para tentar conseguir um recipiente. As chances eram poucas, mas eu tinha que tentar, precisava armazenar um pouco de água ou não conseguiria viver muito mais.
Eu tinha um excelente galão de 5 litros que usei por anos. À noite, o usava como travesseiro, e sempre acordava quando tentavam furtá-lo. Mas um ladrão habilidoso o trocara por uma pedra. Com a distribuição de água acontecendo de 3 em 3 dias, eu passara muita sede. Sem guardar um pouco de água para mais tarde, não adiantava beber até não aguentar mais.
Fui em busca da montanha. O cheiro me ajudava a localizá-la. A temperatura subia rápido e logo o sol nasceria, tisnando e fulminando tudo em seu caminho. Eu tinha que ser rápido.
Cheguei à montanha e comecei a revirá-la, tentando encontrar pelo tato algo que servisse a meu propósito. Havia muitas pessoas ali, procurando coisas. Com a claridade que se avizinhava, comecei a ver o que acontecia a meu redor. Vi uma criança achar um chapéu quase intacto!
– Olha, mamãe, o que eu achei!
Ela ajudou o pequeno a colocar o chapéu.
– Agora tu estás um pouco protegido do sol, filho.
Minha busca não foi de todo infrutífera: achei algo parecido com uma caneca. Acho que comportava um litro, mais ou menos. Estava amassada, mas não parecia ter furos. Aquilo tinha que servir.
Eu tinha que me apressar para chegar na fila antes do nascer do sol, ou morreria com certeza. A fila era a única sombra possível, com aquela longa marquise de quilômetros e quilômetros que ninguém sabia onde terminava. O começo era na distribuição de água.
Cheguei na fila. Claro, havia muita gente. Lembro da época em que a distribuição era diária e não se formavam filas tão longas. Depois, passou a ser dia sim, dia não. E agora, já fazia mais de um ano que era assim: um dia com água, dois sem. Ai, que falta me faz aquele galão de cinco litros!
Lá vinha ele, aparecendo. Imediatamente o calor se tornou insuportável. Devia já ter passado dos 45 graus e o maldito sol nem tinha nascido completamente. As pessoas se encolheram para caber na sombra de concreto.
A fila começou a andar. Os caminhões já deviam ter chegado e estava iniciada a distribuição. Logo as pessoas já atendidas começariam a passar em direção ao final da fila, procurando um lugar à sombra para esperar o por do sol.
O velho à minha frente me olhou com um sorriso sem dentes:
– Lembro de você. Já fiquei com você na fila.
Eu não lembrava dele. Era parecido com qualquer outro velho, mas menti:
– Também lembro de você.
O velho parecia querer conversa.
– O que você fazia antes do Grande Incêndio?
Eu quase não lembrava de que tinha havido um tempo antes do GI. Não gosto de pensar no passado, pois isso torna o presente quase insuportável.
– Não lembro. E você?
– Eu fui professor.
Eu lembro de ter professores quando era criança, que me ensinaram a ler e a escrever. Mas é uma lembrança muito remota…
– Você sabia que antes aqui havia uma cidade próspera?
Olhei em volta. Só vi deserto e lixo. O que aquele velho estava dizendo? Ele devia ser louco. Resolvi não confrontá-lo:
– Não.
– Pois havia. Aqui rolavam riquezas, ostentação. Havia prédios luxuosos em que ninguém morava, apenas usados para pessoas decidirem sobre seus semelhantes. Carros, joias… Até lagos artificiais.
– Como assim? Lagos… Com água de verdade?
– Isso mesmo, água de verdade. Naquele tempo, sabe aquelas torneiras do caminhão pipa? As pessoas tinham aquilo em suas casas. Era só abrir as torneiras e ter quanta água se desejasse.
Agora eu sabia que o velho estava louco.
– Sabe como se chamava esta cidade que ficava aqui?
– Não…
– O nome é quase uma premonição: Brasília.
Velho mentiroso! Se a cidade ainda não tinha ardido em brasas, porque teria esse nome?
Espero que a fila ande rápido para eu me livrar desse biruta.

 

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