Recado

Denise Accurso

Mariana estava com olheiras profundas. O rosto, vincado pelo cansaço e estresse. Sua mãe se assustou ao vê-la na chamada de vídeo:
– O que houve, filha? Está tudo bem?
– Estou só muito cansada, mãe. E sentindo muita falta de vocês. Vamos conversar depois, agora tudo o que quero é dar uma dormida. As horas passam rápido demais.
– Filha… Estou preocupada. Cuida de ti, também.
– Claro, mãe.
Desligou o celular e chorou amargamente. Outro dia contaria à mãe o que acontecera.
Aqueles estágios da faculdade de medicina estavam sendo muito mais pesados do que Mariana esperava. Ela deveria se formar no final do ano e, naquele bimestre, estava praticando na UTI-Covid. Tendo em vista a segurança dos pais e dos irmãos, optara por ficar em um hotel, mas a impessoalidade, a ausência de um abraço, uma palavra de consolo após as longas horas enfrentando aquele ambiente tão carregado, tudo estava sendo mais penoso do que tinha previsto.
Uma UTI, por si só, já é complicada, mas numa UTI-Covid há muito menos chance de saída de pacientes curados. Nessa manhã, deram-lhe a tarefa de telefonar aos parentes dos internados, dando notícias. Aquilo era duro, pois não havia quase nada de bom a dizer. Quando podia relatar que o ente querido da pessoa do outro lado da linha estava estável, já era um alívio.
Tentou se por no lugar daquelas pessoas, cujo sofrimento devia ser maior que o seu. Pensando assim, Mariana falou com calor e simpatia com aqueles interlocutores sequiosos de alguma ligação com seus entes queridos.
Seu coração ainda tão jovem e vulnerável comoveu-se especialmente com uma senhora que, percebendo a empatia da moça, perguntou:
– Escuta… Eu sei que vocês aí tem muito trabalho, mas eu queria te pedir um favor. Um favor especial.
– Bem… Se estiver ao meu alcance…
– Não é nada complicado. Só queria que tu dissesse pra ele que aqui todos nós rezamos diariamente por ele. Fala que o Julinho disse que está com muita saudade e ainda quer jogar bola com o vovô.
– Falo sim, senhora. Estou anotando aqui.
– Ai, minha filha, nem sei dizer o quanto vou te agradecer. Por mais de quarenta anos nunca nos separamos e agora ele está aí e eu não posso nem ver de longe, quanto mais falar com ele! Diz que eu morro de vontade de contar as novidades, do nosso chimarrão da tardinha comentando tudo que aconteceu com a família.
– Olha, Dona Norma, pode deixar. Vou dizer tudinho pra ele. A senhora não se preocupe que ele vai saber o quanto é querido, viu?
– Ai, minha filha. Só isso já alivia meu coração. Deus te pague e te ajude sempre. Tu é a melhor doutora com quem eu falei nesse tempo todo.
Aquele elogio, tão simples, tão sincero, aqueceu Mariana. Sentiu-se feliz por poder fazer algo de bom por alguém que sequer conhecia.
Chegou ao leito do paciente, que estava, obviamente, sedado e intubado. Apalpou o papel no bolso, onde anotara nomes e detalhes. Olhou em volta.
Era um momento excepcionalmente movimentado. Ali estava um enfermeiro, alguns técnicos… imaginou as risadas abafadas ao se abaixar e ficar ali, sussurrando ao ouvido de um homem que não a podia ouvir. Acreditava no valor de sua missão, mas sabia que, como futura médica, faria um papel ridículo. Intimidou-se.
“Volto depois quando estiver mais tranquilo. Não se preocupe, dona Norma. Vou dar seu recado completinho”.
Quase no fim do seu plantão, voltou para cumprir sua promessa, o leito estava vazio.
O paciente tinha falecido.

 

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