Biscoitos de polvilho

Marta Helena Xavier

-Vó! Hoje é dia de fazer biscoito.
Assim Júlia entrava todas as sextas-feiras na casa de dona Zazá. Não importava a previsão do tempo, às doze horas e trinta minutos, neste dia, a campainha gritava. Atrás da porta estava uma menina com seis anos pulando e sacudindo o rabo de cavalo. Logo adiante o pai, sempre impaciente, no seu terno impecável, se despedia com um beijo ligeiro e desaparecia pelo portão. Nesta altura, Júlia entrava na cozinha acompanhando os passos da avó.
- Como foi a semana?
- Igual.
Uma resposta menor que o próprio tamanho. A avó consentia balançando a cabeça. Sabia bem todo o peso daquela minúscula palavra. Servia o almoço para a neta, sem alongar mais o assunto. A refeição seguia enquanto Júlia, aos poucos, discorria sem muito entusiasmo, sobre os acontecimentos na escola e as tardes em casa sob os olhares da babá. Suas bonecas e muita imaginação lhe faziam companhia.
Inquieta, Júlia aguardava a lavação da louça. Após tudo limpo, iniciariam os melhores momentos da semana. Sem atrapalhar, sentava numa cadeira. Não conseguia conter o vai e vem de suas pernas sacudindo o vento na cara do chão. E só depois do tempo esticado feito elástico, percebia dona Zazá reunindo os ingredientes e o material para, enfim, começarem a fazer os biscoitos. Era quando sorria com os olhos.
- Já abri a receita aqui na mesa vó. É a que tu escreveu pra mim.
-Muito bem! Assim não preciso buscar meu caderno, vamos conferir os ingredientes. Iniciavam o melhor na vida delas - fazerem juntas os biscoitos de polvilho. A cozinha espaçosa e bem iluminada permitia ter uma boa mesa no centro, palco e plateia de tantos fazeres. Ali estava a menina, avental amarrado na cintura e no pescoço, conferindo cada ingrediente: farinha, maisena, polvilho doce, açúcar, margarina, fermento, baunilha e ovos. E, claro, não podia faltar a máquina de moer carne com as peças próprias para fazer bolachas.
- Tu também fazia biscoitos com a minha mãe?
Dona Zazá olhou para a neta, boias soltas no rio. Por um momento voltou no tempo e viu Luiza sentada ali, as mãos cheias de massa.
-Vó, tu está surda? Tô falando contigo.
- Eu ouvi, Júlia. Estava lembrando, vocês são bem parecidas. Sim, fazíamos bolachas bem aqui nesta mesa. Mas vou te contar um segredo: as tuas ficam mais gostosas - sussurrou no ouvido da neta.
Olhos arregalados, voz minguada:
- Minha mãe pode nos escutar?
Os pensamentos da avó foram longe e voltaram bem devagar. A saudade era imensa. Em dois meses faria um ano. Aconteceu muito rápido, diagnóstico, quimioterapia, dores e prantos. E tudo acabou numa madrugada fria. Só mesmo a presença da neta para não permitir o congelamento do seu coração.
- Ela pode escutar apenas quando queremos, falei baixinho por precaução.
- O que é isso, pecaução?
- Pre- cau- ção é cuidado demais – disse a avó sorrindo.
- Mas minha mãe nunca me responde!
O olhar de Júlia se perdeu junto com dona Zazá.
- Querida, teus ouvidos podem não escutar, mas teu coração vai saber ouvir as respostas. As mães são assim, não largam os filhos nunca.
Curiosidade derretida feito açúcar no calor do fogo, a menina volta sua atenção aos ingredientes. Iniciam abrindo os ovos, separando as claras para batê-las em neve, só depois colocando as gemas e o açúcar. E assim seguiam enlaçadas numa verdadeira alquimia culinária. Dona Zazá procurando ceder os espaços possíveis desta magia ao comando da neta. Qual das duas mais se divertia era difícil saber.
Massa bem misturada, na consistência certa, ia devagar sendo devorada pelo ranger da máquina. Do outro lado Júlia aparava uma serpente comprida se enrolando sobre a mesa. E o cortador moldava um a um, todos os biscoitos. Lá fora a tarde amadurecia, hora do forno aceso. Aos poucos, a pálida massa cedia aos tons e aroma, aguçava uma vaga sensação de fome.
A noite se insinuava pelas frestas das janelas; chegou o pai, não tinha mais pressa. Iniciava-se a conhecida negociação:
- Só mais um pouquinho! Vem provar nossos biscoitos.
Ainda estacionando o carro em frente ao portão da casa, Júlia avista a menina espevitada correndo adiante do pai agarrada em sua lata de biscoitos. Na porta dona Zazá acena. A jovem desce do carro, não leva mais a pressa da menina, nem lembra quando correu a última vez; nas mãos o pote vazio de sabores. Atravessa o pequeno jardim procurando a chave na bolsa.
No interior da casa percorre cada centímetro da memória. Vai juntando cada pedacinho dos melhores momentos de sua infância e adolescência. Sem dúvida, foram ao lado da avó, nesta casa, fazendo biscoitos. Havia algo em comum - a saudade, agora toda só dela.
Precisava não perder o foco, organizar as coisas para depois fechar a casa até decidir o mais certo a fazer. Seu pai insistia em vender a uma construtora. O terreno de esquina era bastante cobiçado, já tinham feito várias propostas. Dona Zazá sempre recusava. Júlia estava quase cedendo aos conselhos do pai.
Nas três horas seguintes separou tudo a levar da casa. Acomodou em malas e sacolas as roupas e objetos pessoais da avó. Restava a cozinha, o lugar mais precioso para Júlia. Ao entrar, sentiu o aroma do café recém passado, tinham bebido juntas numa agradável conversa na semana anterior. Riram tanto! Sobre a mesa, a cesta com as laranjas agora passando do ponto.
Na cabeceira estava dona Zazá, toda sorrisos, mãos arrumando as xícaras para o café. Adoçou com uma colher apenas, no gosto da neta. Acenou indicando a cadeira ao seu lado. Obediente, Júlia sentou. Olhou para os cabelos brancos a sua frente, sempre arrematados em coque colado à nuca; moldura do rosto mais doce que conhecia. Incrédula, só pensou que as avós deviam ser como as mães, não largarem as netas nunca. Então disse:
- Vó, hoje é dia de fazer biscoito!




 

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