A morte é indelicada

Marta Helena Xavier

Entre tantas coisas, a morte é indelicada. Indelicada e sádica. Levou teus primeiros amores sem se preocupar em deixar a bagagem espalhada pela casa. Tu que junte, separe e dê conta de tudo. Por isso estás aí, perambulando pelos cômodos deste apartamento há semanas.
A morte se impõe diante de ti pendurada pelos cabides, jogada nas gavetas e se exibindo pelas paredes. E tu, de repente, conheces a resignação, pois nada te resta, senão encher as caixas e empilhá-las pelos cantos.
Nesta jornada azeda e inóspita vais encontrando preciosos vestígios pelo caminho. Fios de cabelo na escova e tocos de barba no barbeador, concretamente, é o que restou. Tateias o fundo dos vasos e dos bolsos e descobres, nos papéis amassados de balas de Toffees, o desejo infantil por doces cultivado por teu pai. Te perguntas então, quando, exatamente, ele começou a ficar esquecido e, principalmente, a partir de que momento ele deixou de ser metódico e regrado, avesso aos exageros?
A morte também pode ser generosa e democrática. Ela te dá a chance de encontrares, ao mesmo tempo, harmonia e desalinho em teus amores – a humanidade genuína que havia dentro deles. Tu tens a oportunidade de bagunçar a ordem sempre imposta naquele lugar sem ser recriminada. E, quando menos esperas, encontras um tesouro. Displicente, sobre uma das incontáveis mesinhas, te deparas com o inusitado – uma menina de gesso, sem cabeça, onde no lugar foi colado um pintinho amarelo feito de pompom de lã, aquele do chá de fralda do bisneto. Por cima, da agora cabeça amarela, uma fita colorida disposta como lenço. Do meio do amarelo saltam dois olhos de um perfeito ET. Este novo ser, surgido da engenhosidade de tua mãe, mais que gosto duvidoso ou senilidade, sacramenta o quanto ela precisava de uma realidade paralela para encontrar os seus quereres.
A morte consegue ser reveladora. Um bilhete escrito rapidamente e esquecido numa gaveta pode te mostrar uma preocupação singela ou um desejo guardado. O relevo de um pé no sapato, uma inusitada coleção de porcas e parafusos, tudo vai traduzindo e descortinando detalhes encobertos pela pressa dos dias vividos.
A morte te espreita, sorrateira, atrás das portas e das cortinas. Se agiganta no vazio das paredes e na liberdade que o pó encontra nos espaços para além dos cantos do chão. Ela também pode ser surpreendente quando te coloca diante de algo que nunca foste capaz de ver. Ali, pendurada com um prego, no meio de uma porta, tantas vezes aberta e fechada por ti, descobres uma placa de madeira com o inscrito: “Família quer dizer nunca deixar sozinho ou esquecido”.
Nesta hora, pouco resta, a não ser te apossares da placa e levá-la contigo, tal como um souvenir das vidas que esta morte, tão indelicada, te roubou.

 

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