Cotinha, meu amor

Marta Helena Xavier

A primeira vez que vi Cotinha foi na florista da esquina. Eu estava às voltas com o grande dilema de escolher a melhor flor para minha neta. Tanta diversidade de formas e cores me deixavam atrapalhado. A atendente pouco conseguia me ajudar- mais atenta à tela do celular. Foi quando Cotinha chegou ao meu lado com um sorriso de quem percebe tudo e conhece todas as coisas que importam no mundo. Foi logo pegando um ramo de margaridas e pedindo para ser embrulhado em papel de seda. Mantinha o sorriso nos lábios e os olhos em mim.
Ali, naquele momento, deu-se um encantamento. Ela perguntou se eu precisava de ajuda, e assim, pude chegar ao aniversário de Sara fazendo a maior presença com um buquê de flores do campo.
Minha maior surpresa foi saber que éramos vizinhos. Daí por diante, nos encontrávamos todos os dias para caminhar no parque ou simplesmente tomar um café na livraria do quarteirão. Viúvos, não devíamos explicações a ninguém - pelo menos era o que achávamos antes de nossas famílias interferirem nas nossas vidas.
Cotinha tinha um brilho no rosto capaz de cobrir todas as cicatrizes que carregava nele. A fragilidade do corpo miúdo camuflava a fortaleza de suas raízes. Fugiu da segunda guerra no colo dos pais. Cresceu longe de sua terra, precisando ajudar em casa. Saiu da escola aos doze anos, quando o pai morreu. A mãe não superou a perda do marido, ficando dependente dos cuidados da filha para quase tudo, até morrer alguns anos depois. Casou aos vinte com um homem doze anos mais velho, seu chefe na loja de tecidos. Ele era seco nas palavras, contido nos gestos, mas educado e apaixonado por ela. Tiveram três filhos, todos ajudavam na loja.
A viuvez deixou Cotinha mais uma vez com as rédeas da vida de outros em suas mãos, agora os filhos. Não decepcionou: administrou a loja com a firmeza necessária, sempre com os filhos em volta. Eles cresceram e fizeram suas vidas. Depois de muitos anos, Cotinha se aposentou deixando a loja aos cuidados do mais velho. Foi então que a casa espaçosa deu lugar ao pequeno apartamento no prédio ao lado do meu.
Meus dias se coloriram. Com o tempo, passamos a almoçar juntos, cada dia numa casa. Aprendi a cozinhar só por causa dela. Depois da comida, acostumamos bebericar um chá assistindo o jornal no sofá da sala. Nesses momentos, me perdia admirando as mãos dela segurando a xícara - apesar de tantos nós nas juntas, mantinham nos movimentos a delicadeza de uma gazela. Seguidamente pegávamos no sono em frente à televisão, ela com a cabeça no meu ombro e eu com a minha no acolchoado perfumado dos cabelos dela.
Fiquei mais regrado nos costumes, mais ágil, sem dificuldade para levantar pela manhã. Pelo contrário, acordar era a certeza de um dia bem vivido ao lado dela. Nunca falamos em morar juntos, não queríamos dividir as mazelas das nossas velhices. Os achaques e dores permaneceriam guardados nos armários de cada um.
Tudo foi indo muito bem, até o dia que resolvemos fazer um almoço para nossos filhos. Queríamos que se conhecessem e compartilhassem da nossa história.Com minha família até que foi tranquilo - tirando a surpresa do primeiro impacto, todos foram amorosos. Meu filho e minha nora pareciam felizes em eu ter alguém cuidando de mim. Sara era só carinhos com Cotinha, chegando a me cochichar que tinha gostado muito da nova avó.
Com os parentes de Cotinha foi muito diferente, um grande desastre. Nem a filha ou os filhos conseguiram disfarçar o constrangimento e a desconfiança. No final do almoço, ela havia perdido o riso e os olhos se anuviaram. Serviu a sobremesa de cabeça baixa, quase enterrada no queixo. Ninguém disse nada que nos pudesse ofender, o que doeu foi justamente o escondido nas entrelinhas, nos olhares e nos silêncios deslocados.
Depois do tal almoço tudo mudou. Os filhos de Cotinha passaram a ir no apartamento dela quase todos os dias. Quando me encontravam, eram quase ríspidos. Insinuavam que a mãe estava com problemas de memória, tinha, inclusive, deixado o fogão acesso um certo dia. Achavam que não poderia mais morar sozinha.
Quando saiam, Cotinha chorava nos meus braços, dizia ter medo que a tirassem do apartamento. Falavam em levá-la para uma geriatria onde ficaria em segurança e teria todos os cuidados que precisasse. Um dia, cheguei a dizer que poderia assumir os cuidados dela – quase riram de mim.
Não sei ao certo se Cotinha estava realmente esquecida. Não parecia, ao contrário, quando estávamos juntos, lembrava de tudo, inclusive do horário dos meus remédios. Aos poucos, a tristeza foi se instalando entre nós. Ela começou a arrastar os pés, como se o mundo todo lhe pesasse nos ombros. Eu passei a tossir sempre que o vento me arranhava os olhos. Nossas caminhadas na rua foram rareando.
Foi numa manhã cinzenta que levaram minha Cotinha. Os filhos chegaram com o carro, colocaram tudo no porta - malas, fecharam o apartamento e se foram levando com eles minha alegria. Ela havia perdido a força que sempre teve. Limpava os olhos a todo instante com o lenço que tinha entre as mãos trêmulas, até que precisou entrar no carro e partir. Não lembro o tempo que fiquei na calçada apertando na mão o papelzinho com o endereço da tal geriatria. Só sei que o carro desapareceu da minha vista e muitos outros se foram na mesma direção.
Passei a visitar Cotinha três vezes na semana. Nos primeiros meses, ia de taxi, depois aprendi que podia pegar o ônibus, ficava mais em conta. Logo que me avistava acelerava o passo para me abraçar e chorava. Depois, caminhávamos no jardim e conversávamos sentados no banco embaixo de um abacateiro. Falava da saudade que sentia do seu apartamento, dos nossos almoços e dos passeios. Eu lhe contava do viço da grama do parque e do cheiro de café da nossa livraria. Estas visitas passaram a ser os nossos melhores momentos e quando nos despedíamos, a tristeza oprimia o peito. Ela chorava, eu também.
O tempo seguiu impassível, deixando buracos no nosso caminho. Já faz um mês que ela não me reconhece quando chego. Seus olhos se perdem no meu rosto e logo pergunta para a atendente quem eu sou. É quando eu pego as mãos dela e digo: “ Cotinha, sou eu, Artur, teu namorado”. Ela sorri e pergunta para a acompanhante: “ Eu tenho um namorado? Sou moça ainda!” Seus lábios se abrem em um riso morno e eu consigo encontrar por alguns instantes, no fundo dos olhos dela, a minha amada. Ela me abraça. Eu acaricio seus cabelos perfumados sussurrando só para ela: “ Cotinha, meu amor”.






 

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