Estela

Marta Helena Xavier

Era quase quinze horas. Estela olhou o relógio com um quê de ansiedade. Não conseguia evitar, toda quinta-feira ficava assim. Correu até a sacada para ver a mulher ruiva apontar na esquina. Do apartamento do pintor, chegava o perfume de jasmim, alguns galhos invadiam a sacada de Estela, abraçando a parede que limitava os espaços de cada um.
“Minha Flor” sempre dobrava a esquina às quinze em ponto. Aparecia sacolejando o corpo de um jeito displicente - a cabeça, mirando o infinito. Esbanjava confiança nos cachos ruivos que balançavam sobre os ombros. Costumava carregar uma mochila nas costas e alguns livros nas mãos, colocando em conflito a menina com a mulher - pulsavam juntas no mesmo corpo.
Quando ela tocava o interfone do prédio, Estela sorria e aguardava o pintor atender. A ruiva empurrava o portão e logo era engolida pela porta principal. Estela se esparramava no sofá grudando os ouvidos na parede da sala. O pintor, com aquela voz grave e rouca, tão eficiente em fazer as pernas de Estela amolecer, articulava um “ Oi, minha flor”, deixando a porta bater. Os passos se espalhavam pela sala. Estela imaginava Minha Flor tirando a roupa para o pintor trabalhar. Em seguida, ele iniciava os comandos até chegar na pose perfeita da cena: “ dobra mais um pouco o joelho direito, tira o polegar do rosto e coloca em baixo do queixo”.
Do outro lado da parede, Estela já estava nua. Mirava o seu reflexo no espelho tirado do quarto e instalado no meio da sala. Deixava tudo pronto – o incenso de almíscar e as velas acesas. Diante do espelho, movimentava o corpo conforme os comandos do vizinho. Imaginava os olhares dele em Minha Flor e todo o efeito que isto poderia causar.
Estela molhava os lábios com a ponta da língua, intercalando com pequenas mordidas. Ora buscava um punhado do cabelo para cobrir o seio esquerdo, ora a mão direita se intrometia entre as pernas. E nesse vai e vem, se deliciava em sensações que só voltou a sentir com a chegada do pintor no apartamento ao lado. Os mamilos afloravam rijos e o corpo todo tremia com a dança tímida da mão sobre o púbis. Os dedos adquiriam vida própria perdidos entre a abundância de pelos e só paravam quando eclodiam os gemidos, que Estela já não sabia se eram seus. Se inundava em meio a uma languidez que lhe invadia o corpo. As ancas largadas de forma tão displicente, lembravam a melancolia que só os dias de chuva costumam carregar. Vinha, então, a vontade de acender o cigarro que nunca havia fumado.
Naquela tarde, já passava das quinze e trinta e Minha Flor não havia chegado. Os cotovelos de Estela estavam vermelhos e doídos, quando ouviu a campainha de sua porta tocar. Correu para atender. Era ele. Com aquela voz que a tirava do chão, foi se desculpando e pedindo, com olhos de cachorro sem dono, se ela não podia fazer a gentileza de posar para ele. Sua modelo havia adoecido e o prazo para entregar a encomenda de um quadro estava se esgotando. Pagaria bem pelo transtorno.
Estela não lembra exatamente o que respondeu, mas, na sala do pintor, o perfume de jasmim era mais intenso e o espelho havia pulado para dentro dos olhos dele.


 

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