O homem azul

Marta Helena Xavier

Amaro chegou empurrando devagar a porta de vai e vem. Não era de seu feitio ser notado num repente, apenas desejava mostrar sua presença. A noite já andava barulhenta - tanto que ninguém notou a troca de guardas em frente à sala. Amaro viu primeiro um par de pés com calcanhares rachados e unhas ameaçadoras que avançavam além dos dedos. Logo depois, duas pernas de musculatura flácida pareciam esquecidas sobre o lençol estreito do colchonete. Um pouco mais adiante, um tronco franzino apoiava um emaranhado de fios que se aderiam na pele suada e quase azul. Os braços abertos, feito Cristo na cruz, eram portas escancaradas ao gosto de agulhas e equipos, por onde gotejavam, em ritmo lento, líquidos brancos e amarelos - navegavam em direção às carnes vivas, entrando na corrente única para cumprir uma missão.
Ao redor do homem a equipe trabalhava em sincronia frenética. O monitor mostrava o risco impreciso do bater de um coração débil. A enfermeira tentava instalar a bomba de infusão e o médico introduzia o tubo através da boca. O homem, cada vez mais azul, se entregava por inteiro sem nenhuma reação. Tinha o peito inerte - pulmões em silêncio. Os olhos, escancarados, miravam o nada no meio do teto. A cabeleira prateada e os sulcos bem marcados do rosto, informavam que o tempo já tinha deixado ali uma longa história.
Amaro tinha muita fé. Desde menino era conhecedor das rezas e dos caminhos das procissões. Acompanhava as mulheres da casa na lida com Deus, os santos e Nossa Senhora. Sempre quando via alguém assim, tão à mercê de outros, juntava as mãos no pensamento e rezava. Nunca seria demais a mão de Deus guiar as mãos dos homens. Feita a oração, tirava do bolso do uniforme a figurinha gasta de Nossa Senhora de Lurdes e trazia aos lábios – encerrava a oração dirigindo os olhos aos céus. Assim eram as noites de Amaro, cuidava da porta da sala de emergência e das almas que transitavam por ali.
Olhando pela fresta da porta, notou que o azul se espalhava, não era mais só nos pés e nas mãos. Tomou conta das pernas e dos braços. Os lábios, antes desaparecidos, agora se arreganhavam da cor do céu. O monitor se fez em uma nota só, a sala se aquietou. Aos poucos, os tubos foram retirados e o homem finalmente ficou nu.
Nestas horas, Amaro não mais se abalava. Conhecia a história do destino. Para cada um, uma hora sem atrasos. Aceitava de bom grado a trajetória que lhe cabia nesses momentos. Escancarou a porta e conferiu a etiqueta grudada no lençol que agora cobria o homem azul. Calçou as luvas e começou a puxar a maca. Foi empurrando devagar até a porta do morgue– medo de ofender a morte. Ficaria ali, do lado de fora, altivo, fazendo o seu trabalho.

 

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