O vôo da borboleta

Marta Helena Xavier

Quando Laura acordou não sabia onde estava. As costas se insinuavam pela dor e o braço esquerdo formigava. Os olhos, acostumando com a escuridão, iam varrendo os quatro cantos das paredes sujas e descascadas. Ela estava deitada em um colchonete fedido, no meio daquele cubículo. Viu uma abertura bem no alto de uma das paredes, quase junto ao teto. Três barras de ferro dividiam um céu escuro de uma estrela só. Nem pulando conseguiria alcançar. Na parede em frente, uma porta de ferro. O cheiro era insuportável. Laura com a mão sobre a barriga, sentiu o bebê mexer - um alívio. Pensava no quanto de tempo teria passado desde que foi tirada de dentro do café com seus amigos e Cássio. Eles estariam ali também? Aos poucos, a consciência dos hematomas espalhados pelos braços e o corte seco na mão direita davam forma à memória. O rosto dolorido e o gosto de sangue na boca trouxeram a lembrança do soco que levou.
Naquela época era comum os professores serem vigiados de perto pelas direções dos cursos. Precisavam mostrar o planejamento de suas aulas - todos na universidade se sentiam pressionados a seguir um mesmo caminho. Naquela manhã tinha sido pior- seus textos tinham sido riscados mais que das outras vezes. Palavras simples tinham o poder de despertar as maiores desconfianças. Como ensinar com um vocabulário tão restrito?
A verdade precisava ser escondida nas reticências de narrativas criativas, enquanto nos corredores rareavam os cochichos – já não se sabia em quem confiar. Lembrou do tanto se debateu e gritou quando os dois homens tentavam enfiá-la dentro do carro preto, deve ter desmaiado depois do soco.
Laura tinha um corpo minguado, só as pernas mostravam alguma musculatura. Os braços longos lembravam duas espadas, sempre agitados no ar seguindo o rumo de sua fala incisiva. O rosto, levemente redondo, abrigava um par de olhos questionadores. Os óculos, de armação preta, lhe emprestavam a seriedade que a juventude desconhecia.
Seus pensamentos foram interrompidos por passos ouvidos vindo de trás da porta. Um barulho de chave e logo uma luz forte fez com que espremesse as pálpebras.
−Levanta!
− Onde estou?
−Tu não tá aqui pra fazer perguntas.
Era uma voz seca e intimidadora. Laura obedeceu.
− Coloca as mãos pra frente.
Mais uma vez ela acatou a ordem do homem de corpo atarracado. Algemada, foi agarrada por um dos braços e levada através de um corredor de azulejos verdes até o meio da parede. O chão, de um branco encardido, fazia ecoar nas paredes o andar dos coturnos do homem que a levava. Só então Laura se deu conta que estava descalça. Quase não reconheceu os próprios pés, cobertos por uma imundície que parecia cinza de carvão. Teve os passos travados diante de uma porta pintada de verde desbotado. Notou que ele não passava de um rapazote com um bigode ralo que nem sombra fazia na boca de traço fino e reto, embora força não lhe faltasse - a empurrou para dentro fazendo com que sentasse em uma cadeira solitária no meio da sala. Em frente, longe uns três metros, havia uma mesa com uma luminária acesa sobre ela. O resto era só breu. Ouviu a porta bater levando os passos do sujeito.
Laura começou a tremer. Um sentimento de angustia invadiu seus pensamentos. Era tanta dor sentida em cada pedaço do corpo, que não tinha coragem de levantar da cadeira. Um vento gelado atingiu suas costas com o ranger da porta se abrindo. Um homem alto e careca passou ao lado dela indo sentar atrás da mesa iluminada. Por baixo do uniforme oliva se insinuava um corpo atlético. O rosto carregava uma dureza no olhar, salientada pelas espessas sobrancelhas. Ele a mirou sem pressa. Acendeu um cigarro fedorento enquanto colocava sobre a mesa um par de botas pretas bem lustradas.
−Tira a roupa.
Ele não disse mais nada, esperava. Laura começou a chorar.
−Prefere que eu tire? Anda logo, sua vaca, tira a roupa.
Laura colocou as mãos na barra da blusa e foi puxando o pano para cima dos braços erguidos. Tomada por uma coragem que desconhecia ter, tratou de trancafiar o choro. Mirou o desgraçado, tirou a blusa e foi abrindo o fecho da saia que caiu sobre os pés. Com um braço cobria o sutiã colado aos seios.
− É para tirar tudo.
Só o baixar dos olhos até o chão foi lhe deu forças para retirar o que faltava. Diante daquele homem que a fitava com arrogância, se viu nua, com as mãos cobrindo o que podia. Ele, com um riso cínico na cara, levantou-se bruscamente e foi até ela.
Laura não lembra quantas bofetadas levou, nem em que momento desabou em queda livre até o chão. O que não esquece é que gritou estar grávida, quando um pé de bota lhe chutou as costas. Depois, tudo escureceu. Quando acordou, estava deitada no meio da cela. Tinha amanhecido. Entre as grades da minúscula janela viu uma borboleta branca pousar. As três barras de ferro enterradas no cimento não foram capazes de segurar o balanço cadenciado daquelas asas que graciosamente passaram a sobrevoar sua cabeça. Lembrou do dia em que conheceu Cássio.
Era uma manhã típica de primavera soprando um vento frio - normal para um começo de dia naquela estação. Os ipês roxos do pátio da universidade se perfilavam rente ao caminho de paralelepípedos, deixando o vento levar as flores de suas copas. Com graça, as pétalas bailavam antes de pousar na rua . Cássio apontou em sua direção. Vinha enfiado em um All Star vermelho que afundava no roxo das flores caídas. Tinha no rosto um sorriso aberto que dava ao olhar um quê de doçura e malícia. Quando ficaram frente a frente, a um palmo de distância, uma borboleta passou voando entre eles. Nunca mais se desgrudaram.
Um tremor, no canto direito da barriga ainda pouco volumosa, lhe deu a certeza de que o bebê resistia junto com ela. Devagar foi levantando e se apalpando – precisava ter certeza da completude de seu corpo. Tocou o inchaço do rosto e o espaço na boca, onde antes, havia um dente. Tinha sede, muita sede. As costas latejaram quando tentou dar alguns passos.
Abriu-se um pequeno vão no meio da porta de ferro e por ali enfiaram um prato e uma caneca. Laura comeu o pão seco como se fosse um banquete. A água escorrida da caneca foi insuficiente para saciar tanta sede. Ficou sentada agarrada às próprias pernas e só então lembrou da borboleta. Lá estava ela, entre as grades da minúscula janela. Sacudiu devagar as asas até que abraçou o céu e sumiu de vista deixando Laura para trás – até as borboletas preferem a liberdade.
Laura queria saber se Cássio e os outros estariam ali também. Às vezes ouvia gritos ou uma espécie de choro sufocado. Mas, o que mais lhe chegavam eram gargalhadas, barulhos de móveis arrastados e, em alguns horários música alta. Perdera a noção do tempo- apenas sabia se era dia ou noite pelo fiapo de céu que conseguia enxergar.
Estava com dezoito semanas de gestação quando foi presa. Ela e Cássio planejavam casar logo, já tinham entrado com os papéis. Naquele dia, iriam sair do café para olhar um apartamento maior. Cássio tinha acabado de mostrar as chaves no bolso. Estavam tão felizes! Com os olhos fechados, Laura viajou nas melhores lembranças, nos momentos mais especiais, no tempo que agora só se movia para trás – adormeceu com um sorriso roubado dos dias de ontem.
Abriu os olhos quando estava sendo puxada pelas pernas. Viu que havia sangue no chão e uma vassoura varria algo para dentro de um balde. Jogavam água e varriam, varriam e jogavam água. Ficou um cheiro de sangue velho infestando o ar. Laura adormeceu outra vez. Muitas horas depois, foi despertada por uma dor lancinante nas costas e na barriga. Apalpou o ventre e lembrou do sangue. Um nó na garganta sufocou o choro. Agarrada às próprias entranhas, chamou por ajuda, mas ninguém apareceu. Não conseguia sequer levantar para buscar o prato e a caneca junto à porta. Sentia frio, muito frio. As mãos estavam geladas e a roupa molhada. Era uma noite de estrelas brilhantes e a borboleta estava lá, ao pé da janela, batendo as asas em direção a ela. Tão linda! Voava pela cela sem sentir o peso sufocante daquele espaço, pousava e logo se exibia em círculos sobre o corpo de Laura estendido no chão. Devagar, foi parando bem junto ao rosto grudado no piso frio.
Laura pode olhar o branco daquelas asas bem de perto. Percebia pequenos pontos pretos nas bordas que timidamente formavam um fino contorno em cada asa. O branco era quase transparente, deixando à mostra frágeis riscos lembrando uma teia de vasos. Um par de antenas se movia incessante acima de olhos que pareciam não ver. Aos poucos, a dor de Laura foi embora. Um perfume de incenso invadiu a cela e um sentimento de leveza lhe deu coragem para levantar. Viu a borboleta indo para a janela. Respirou fundo, sentiu o ar tomando conta de todo seu corpo, ergueu os braços e foi. Passou entre as grades, logo atrás da borboleta.






 

voltar para página do autor