O professor

Marta Helena Xavier

Pouco se sabia sobre o homem atrás daquele personagem grotesco que um dia se instalou na nossa rotina. Um amontoado de ossos com a cabeça coberta de pelos. As unhas pareciam garras e o cheiro que exalava provocava náuseas. Embaixo do chuveiro, tremia, agarrado em nossos braços. Enquanto a água levava pelo ralo um tanto de sua vida, desprendiam-se também de seu corpo os tufos de cabelo e barba cortados. Já no leito, limpo e coberto, os olhos dele nos encontraram. Pela primeira vez, reconhecemos ali um ser humano.
Durante algum tempo foi o “desconhecido do leito quatro”. Comia com uma urgência estabanada, nem as migalhas sobravam na bandeja. Depois, dormia o sono dos que não precisam mais lutar por qualquer coisa. Levou mais de uma semana para emitir algum som que fizesse sentido. Sem documentos, sem nome, sem história.
Uma noite, logo que cheguei perto do seu leito, abriu a boca num sorriso amarelado e disse: “ Boa noite, pode abrir a janela?” Do pátio do hospital, um plátano se insinuava, com alguns galhos quase tocando no vidro. O desconhecido virou a cabeça para a árvore, como se a cumprimentasse. Nessa noite, descobrimos um nome, uma profissão e uma história de vida.
“ O Professor”- foi desta forma que passamos a chamá-lo - se tornou uma grata companhia nas madrugadas dos plantões, não só pela educação e gentileza, mas principalmente pelo dom que demonstrava possuir ao narrar histórias. Contou que antes de se perder no álcool, ensinava em duas escolas. Construiu uma família com mulher e dois filhos, comprou uma casa financiada e tinha até um carrinho para se deslocar de um lugar ao outro. Não sabe quando, exatamente, se viu nas ruas, mas lembra bem da morte do filho e do boteco, onde, logo depois do enterro, começou a beber.
Portador de uma anemia grave, precisava ser submetido a regulares transfusões, e nesses momentos, gastava o tempo olhando os pássaros pela janela. Dizia que eles eram como crianças inquietas correndo no pátio na hora do recreio. Ele ficava ali, intercalando sonhos e lembranças, preenchendo o tempo de um presente surrado de acontecimentos. Mais tarde, quando as dores dos outros se aquietavam, eu ia até ele com um copo de chá. Então, o professor me mostrava os vagalumes que enfeitavam o plátano como árvore de natal. Eu nunca os via, mas fazia de conta que sim. Não queria quebrar o encantamento daqueles momentos, apesar de que o homem, ainda muito fragilizado, me emocionava com sua voz. Nessas horas, sua cama virava palco para o contador de histórias.
A família nunca apareceu para vê-lo. Nos horários de visita, seu corpo se agitava e os olhos pareciam lutar para saltar até a porta da enfermaria. Com o tempo, ele se virava para a janela enquanto duravam as visitas dos outros.
Passou a colocar tristeza nos cantos sombrios das histórias que contava. Quanto mais triste, mais falante ele ficava. Narrava a guerra do Paraguai, a revolução Farroupilha, a ditadura militar, as diretas já. Em outras noites, viajava até a Europa em busca de Napoleão ou Maria Antonieta. Ia da idade média à bomba atômica, na segunda guerra. Era como se não quisesse partir sem doar tudo que sabia – um avião passando e deixando rastros de fumaça pelo céu.
Era outono. Logo que cheguei, abri a janela e lá estava o plátano vestindo tons marrons e vermelhos que brilhavam com a luz da enfermaria. Os olhos do professor estavam fechados. O cutuquei: “Ei, já viu o colorido desta janela?” Ele mirou o vidro e sorriu. Pegou minha mão, a levou até o rosto, a beijou e disse: “ Obrigada”. Depois, cerrou as pálpebras buscando o silêncio e se aninhou com ele. Já sabia - receberia alta na próxima manhã.
Se foi quase no final do dia. Ficou enrolando o quanto pode, pediu para tomar banho, depois para almoçar e chegou a proclamar uma dor na barriga. Mas, no final da tarde, com o vale transporte nas mãos junto ao endereço do abrigo, não houve repertório capaz de adiar o adeus. O professor partiu deixando para trás seu palco desalinhado. Muitos comentam terem visto, em algumas noites, vagalumes na janela do leito quatro. Confesso que uma vez também os vi, e lá embaixo, junto ao tronco do plátano ,por um momento, enxerguei o professor carregando um chapéu de onde escapavam dezenas de vagalumes.

 

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