O barco

Marta Helena Xavier

Naquele dia, tu abriste a janela e deixaste o ar fresco das primeiras horas da manhã terminarem de te despertar. Sentiste o calor tímido do dia recém começando a invadir o quarto. E lá adiante, onde o céu encontrava o oceano, viste uma leve sombra se movimentar. Logo pensaste nele. Estaria voltando? Era tudo que querias. Alargaste a boca num sorriso algariado. Esfregaste os olhos com os nós dos dedos e fixaste bem a vista no mar. Achaste mesmo que devia ser um barco. Teu coração confirmava em meio à retumbância que fazia no teu peito. Apoiaste as mãos no parapeito da janela e esticaste os pés, levando o corpo o mais para frente possível. Se pudesses, voarias em direção à pequena sombra que se movia no horizonte.
Te deixaste levar pelas lembranças. Reviste o dia em que ele partiu te agarrando o corpo acima do chão e te beijando com a força de uma saudade ainda adormecida. Escutaste as promessas de uma volta gloriosa e breve. Acreditaste. Tuas mãos se contorciam uma na outra – a ansiedade dirigida para longe do rosto sereno e iluminado.
Quando teu pai te chamou pelo nome, tuas lembranças voltaram para o canto de onde vieram. Contrariada, abriste a porta e encaraste o velho com impaciência. Nem o cheiro do café recém - passado amainou teu descontentamento. Mas, preferiste calar e seguir com ele até à mesa. Molhavas o pão dentro da caneca enquanto discorrias sobre o barco visto no mar. Teu pai sentenciava com os olhos cravados no teu rosto. Falava que não era ele, que jamais voltaria, era um homem sem palavra e sem lugar no mundo. E tu, absorta dentro de ti mesmo, negavas o que vias nos olhos de teu velho. E foi o grito dele que te trouxe de volta.
Mesmo assustada, respondeste devagar. Não, não irias no mercado hoje. Eram poucas as peças prontas. Melhor ficar e seguir rendando. Além disso, tudo indicava que o dia seria de uma quentura por demais. O céu estava lavado de uma ponta à outra e as cigarras dançavam com seu canto estridente.
Sentiste que teu pai escutou meio cismado, carecia de fé nas tuas palavras. Não deste bola, tiraste a louça da mesa como que encerrando o assunto. Ele não insistiu. Te deu um até mais e sumiu pela porta. Correste de volta ao quarto - lá, a janela escancarava o mar por inteiro. A sombra continuava quase no mesmo lugar. Se era um barco, estava sem pressa.
Puxaste a almofada e a cadeira para perto da janela, escolheste um desenho e, sem perceber, já estavas trançando os bilros entre os dedos das tuas mãos. Os olhos, vira e mexe, buscavam o barco. Ele parecia estar à deriva, ia da direita para a esquerda feito um bêbado tentando se equilibrar nas próprias pernas. Seria o barco dele? Ainda estava longe, impossível saber.
Passado um par de tempo, tamanho foi o alarido, que tua atenção foi puxada novamente para o mar. Finalmente, não era mais só uma sombra. A proa se insinuava inteira em azul e branco. Sim, era o barco dele. Largaste as rendas. Descalça, atravessaste a porta, seguindo com os pés apressados a importunar a areia quente. Agarrada à saia levantada até os joelhos, te enfiaste mar à dentro. Junto a ti, os homens se aglomeravam na espera. Aos poucos, viste que te era estranha a cabeleira agitada pelo vento que tremulava emoldurando um homem mais velho. Mas o barco era o dele. Algo entalou na tua garganta. Um arrepio te percorreu as entranhas. Como tu, os homens se perdiam nas perguntas sem respostas.
Quando o barco, enfim, roçou a areia, tu e os outros correram para ele. Era um sol de meio - dia que acarinhava a praia. A brisa sussurrava nas ondas mansas que roçavam tuas pernas. O homem, no barco, gesticulava e dizia o acontecido. Tinha encontrado a embarcação em alto mar à deriva. Dentro, encontrou um sujeito caído, esticado, de bruços junto ao leme. Estava morto, devia ter tido um passamento. Não deu para fazer nada, o corpo já estava gelado. Resolveu trazer para a praia mais próxima. Queria saber se alguém conhecia o sujeito.
Sim, ele era conhecido de todos. Era teu, mais que de qualquer outro. Ficaste um tempo perdida num silêncio sufocante, até que o horror saiu de dentro de ti num grito alucinado.
Hoje, abriste mais uma vez a janela. O dia se escancarava por debaixo de um céu cinzento. Uma chuva fina se fazia em poça no parapeito e escorria nos teus braços. No mar de ondas carrancudas, o barco balançava, ancorado firme no teu peito.





 

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