Por trás do vidro

Marta Helena Xavier

Finalmente, viraste o rosto na minha direção. Percebeste o quanto clara era a visibilidade entre nós, mesmo com uma parede de vidro nos separando. Como não foste capaz de enxergar isso até aquele momento? Diferente de sempre, as palavras se calaram, abriram caminho para o encontro do olho no olho. Nada de gestos nos distraindo a atenção. Somente os olhos falando - os teus e os meus. Nossas agonias, barradas pelo vidro, não se cruzaram, estancaram na frieza da matéria que nos separava. Nada teve força para evitar o caminhar de nossos pensamentos que iam e vinham carregando perguntas e respostas acumuladas pelos cantos de uma existência.
Pela primeira vez, foi o silêncio que gritou entre nós. Tantas vezes eu tentei te avisar. Te pedi, quase te implorei. Apelei até. Foste surda e arrogante. Creio que chegaste a tocar na insanidade dos aflitos. De qualquer forma, já era tarde. Sei que entendeste, teus olhos estavam fixados nos meus, me pediam socorro com um certo ar de incredibilidade transbordando pelos cantos - tua teimosia ainda pulsava, mesmo assustada.
Fiquei ali, grudada naquela parede transparente, feito o Homem Aranha. Se te levavam para a sala da direita, eu corria com a cara colada no vidro, até onde era possível te enxergar. E tu, de novo me encontrava, e nossos olhos, mais uma vez davam as mãos. Me perguntavas quando sairias dali. Eu queria dizer para não desistires, que não tivesses medo, logo nos veríamos novamente, mas minha descrença me traia. Me perdoa não ter entrado contigo, não ter ficado do teu lado. Eu não podia. E foi por isso que tanto briguei com tuas birras, sabia o tamanho do assombro que a solidão poderia te causar.
Chegou uma hora que te levaram para longe de onde eu poderia te ver. Foi minha vez de tocar na solidão. Quis tanto retornar aos dias em que subíamos a rua de mãos dadas até o fim da linha do bonde. Tu me puxavas para dento e eu ficava distraída. Acompanhava o motorneiro ir virando os encostos dos bancos de madeira em direção ao centro da cidade. Me acomodavas ao teu lado, e eu, batendo os pés no vento, me deixava sonhar embalada pelos cartazes de propaganda, grudados com goma arábica, logo acima das janelas do vagão. Eu não tinha medo de nada estando ao teu lado.
Foram dois dias sem te ver. Tentei ligar para o teu celular, mas, como sempre, não atendeste. Queria te acalmar. Não deu. Outro dia, encontrei no teu whatsapp minhas chamadas não atendidas. Também achei a mensagem que te deixei e não chegaste a ler- não tinham os dois traços em azul. Acabamos falando uns dias depois. Já estavas no quarto, tua acompanhante me fez uma ligação por vídeo. Disse que querias falar comigo. Estavas com medo, agitada, com falta de ar. Lembro que te acalmei, como tantas outras vezes, quando me ligavas à noite, assustada, temendo a morte através do peito apertado e doído. Te pedi calma, e tu, já sentada na cama, respirava mais devagar. Os traços do teu rosto se aquietaram na confiança das minhas palavras. Se eu soubesse que esta seria a última vez que conversaríamos, teria falado mais, teria dito que estava tudo certo entre nós. Não deu.
No outro dia, tudo estava diferente. Não pude mais te ver ou te falar. Os dias passaram a ser parênteses à espera da noite - quando as notícias chegavam - nem sempre boas. E assim se arrastaram, até que, por um acaso, me vi diante de outro vidro te olhando. Estavas inconsciente. Os tubos que te invadiam o corpo pareciam não te incomodar. Tinhas a fisionomia serena dos adormecidos. Lembro ter tentado rezar, mas nunca fui boa em orações. Fiquei ali te olhando e desejando que tua teimosia te ajudasse a ser a sobrevivente que costumavas ser. Não me atendeste. Mas desta vez, mãe, eu entendi. Seguiste o chamado do pai, preferiste continuar ao lado do companheiro da tua vida. Ele, certamente te rondava, repetindo teu nome, perdido - recém havia partido - precisava de ti para encontrar o caminho. Fica tranquila, estamos todos bem, ainda como se estivéssemos perdidos num sonho, mas bem. Acordamos, cada dia, acreditando que continuam cuidando um do outro, seja lá onde estiverem.



 

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