Quando ele se foi

Marta Helena Xavier

Me avisaram que tinha acontecido, havia se consumado - pelo menos foi o que disseram. Podia não ter acontecido ainda. Pensei em pegar o primeiro ônibus ,mas, quando percebi, estava na estrada dirigindo. Parte de mim olhava os traçados no asfalto e o outro eu se remexia em dias passados. Quando me juntei novamente, estava estacionando o carro em frente à casa dele, a casa de todos nós, aquela que ele não nos permitia esquecer que era mais dele do que nossa.
O segundo degrau rangeu como de costume. Passei pela porta sem escutar o que me diziam, se é que me falavam algo. Lá estava ele, esticado e espremido naquela caixa. De dentro, sobressaía o nariz, sempre arrogante, empinado para o alto. Chegando mais perto, pude contemplar suas mãos entrelaçadas com os dedos finos e compridos, parecendo adagas esquecidas sobre um banco. Fui até os olhos dele – um alívio, estavam cobertos por pálpebras que acomodavam o cansaço de tantos anos.
De repente, o ser estranho que habitava em mim ficou ofegante e tentava se apoderar da minha respiração. Um ser que costumava se intrometer nas minhas veias e correr mais que eu até se apoderar do meu coração. Sentia ele mexer dentro do meu ventre me obrigando a fazer de tudo para que saísse, mas só saia quando a vontade era dele, não minha.
Olhei para o corpo estendido de meu pai e percebi que seu peito arfava e as adagas se afiavam na preparação de um novo ataque - como no dia em que apunhalaram minhas costas e cabeça porque meu boletim escolar tinha notas vermelhas.
Gritei para que todos vissem: ele está vivo, está respirando! Ninguém escutava, continuavam com suas caras sombrias, alheios ao meu desespero. Amordaçaram o choro pelos cantos da casa e se recusavam a me escutar.
Minha irmã chegou perto e me estendeu uma xícara de café. Mostrei a ela os olhos abertos do pai. Ela não via. Os olhos dele miravam, agudos, dentro da minha alma. Ela não se importava. O pai sentou dentro da caixa e estendeu suas adagas segurando meu pescoço. Minha irmã se virou e saiu andando, me deixou sozinho no meio das garras dele. Eu tentei gritar, não consegui. Aquele estranho dentro de mim também me abandonou, se esgueirou por todos os meus orifícios e me atirou no chão.
Todos continuaram bebendo e brindando e meu pai também estava lá, seus olhos não me viam mais, suas adagas estavam segurando uma taça de vinho branco e seu nariz apontava o infinito.

 

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