Enchente

Denise Accurso

Isa sentia-se apreensiva naquela manhã chuvosa. Não podia se atrasar de novo, já estava na mira da chefia.
Viu o ônibus de longe. Correu. Conseguiu se aproximar o suficiente para receber toda a água represada no meio-fio em seu corpo. Ficou encharcada. Não sabia o que fazer: se voltasse pra trocar de roupa, o atraso seria irremediável. Por outro lado, já perdera o ônibus, então o atraso ERA irremediável.
Resolveu voltar em casa, trocar de roupa e chamar um carro de aplicativo. Iria pagar caro pelo serviço numa manhã de chuva, mas era o melhor a fazer. Deu meia-volta. A sensação de apreensão ainda não a deixara.
A casa estava quente, acolhedora. Tirou a roupa encharcada na entrada, secou-se e, sem pensar, pôs água no fogo. Ia fazer um chimarrão. Iria levá-lo para o trabalho? Imaginou-se chegando de cuia e garrafa térmica, os olhares de todos. Quase riu sozinha.
A casa a prendia. Não queria tornar a sair. O trabalho a entediava, sentia-se sub-aproveitada e incompreendida. A tentação de faltar era grande. Sabia que estava na berlinda e que, se faltasse, talvez fosse a gota d’água e perdesse o emprego.
Colocou um roupão quentinho, preparou o chimarrão e sentou-se. Já estava decidido: não ia. Só não sabia o que dizer, o que fazer. Olhou para o relógio na parede da cozinha: ainda não estava atrasada. Se quisesse, se corresse, ainda podia chegar. Nõ se mexeu.
A apreensão não a deixava. Nunca fizera nada parecido antes, nem quando era bem nova. Sempre fora responsável, pontual. Mas nos últimos meses, tudo mudara. O trabalho convertera-se em sacrifício. As horas não passavam, chegava querendo ir embora. Vasculhava o calendário à cata dos feriados.
Isso não era jeito de viver!
Estava imersa nessas reflexões quando o celular tocou. Era do trabalho.
– Isa! O que houve contigo? Está tudo bem?
Sentiu uma agulhada de culpa. Era sua chefe, e parecia genuinamente preocupada.
– Está, sim. Olha… Eu já ia te ligar…
– Ai, que bom. Isso aqui está uma loucura. O pessoal que conseguiu chegar deu muita sorte. Onde tu estás agora?
Sem entender muito bem o que se passava, Isa disse a verdade:
– Estou em casa. Tive que voltar.
– Ótimo. Daqui a pouco te ligo.
Isa ligou a TV e ficou sabendo que a chuvarada fechara várias ruas, que ônibus haviam parado e as pessoas precisaram de ajuda dos bombeiros pra sair. O centro da cidade, onde trabalhava, estava ilhado, inacessível.
Sentiu uma pontada de alívio mesclada com culpa. Essa desgraça a salvara de ter que inventar uma mentira pra se justificar. Mas algo ainda a incomodava. Era como uma peça que faltasse, ou estivesse no lugar errado.
Não era possível que uma enchente, que causou tantos danos materiais e pessoais, pudesse ser vista como salvadora. Não estava certo aquilo. Isso não podia continuar.
Ligou para a chefe.
– Oi, é a Isa de novo. Sei que talvez o momento não seja o mais adequado, mas preciso te dizer que quero sair do emprego. Podes providenciar meu aviso?
Finalmente, aquela apreensão a deixou.



 

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