Conhecido?

Denise Accurso

Era mais um dia chato de trabalho. Os mesmos gráficos, os mesmos telefonemas, as conversas de sempre. Cheguei cedo e, por ser a primeira, fui fazer café. Enquanto aquele cheiro inebriante se espalhava pela pequena cozinha, ouvi os ruídos que indicavam não mais ser eu a única presença no escritório.
Enchi minha caneca e voltei-me em direção à porta, quando alguém entrou e chocamo-nos. Ambos nos banhamos em café fervente!
– Ai! Minha camisa!
Eu não disse nada, apenas me virei, abri a torneira de água fria e molhei meu colo, impedindo uma queimadura mais séria. Depois, sugeri ao desconhecido estabanado que fizesse o mesmo.
– Mas que merda! Disse, como falando consigo mesmo. Não me ofendi.
A sorte de eu ser friorenta é que sempre tenho um pulôver na gaveta. Troquei de roupa no banheiro e lavei a blusa que estava suja. A combinação não ficou nenhuma maravilha, mas era melhor que passar o dia com uma roupa molhada.
Fui para minha mesa curiosa em saber quem era o cara novo. Ninguém tinha ido embora. Teria sido criado algum novo cargo? Ainda, sentia que o tal estranho não me era tão estranho assim. Comecei a ter certeza de que já o conhecia.
Meu chefe fez uma rápida reunião e nos apresentou o desconhecido da camisa manchada. Nossa equipe seria cindida em duas, com dois chefes. Foi isso que entendi, porque não consegui prestar muita atenção. Estava completamente absorta pela busca da identidade do desconhecido que, eu tinha certeza, não era tão desconhecido assim. Eu o conhecia! Mas quem era ele?
Na hora do almoço, comentei com minha amiga Leila que estava quase enlouquecendo tentando lembrar de onde eu o conhecia. A partir de semana que vem, Leila trabalharia para ele.
– Por que tu não falas com ele e diz a verdade? Que tens certeza de que o conhece, mas não consegue lembrar de onde.
– Será, Leila? Isso não ia parecer uma cantada de quinta categoria?
Rimos e voltamos ao trabalho, eu com aquele verdadeiro incômodo, tentando descobrir quem era o cara.
A semana voou. Eu desisti de tentar lembrar, afinal, tanta coisa aconteceu, mudamos o layout da sala pra nos dividir em duas equipes, organizamos arquivos e outras coisas. Enfim, chegou a segunda-feira fatídica. Leila já me dissera que ele devia apenas ser parecido com alguém que eu conhecia, por isso eu ficava assim, com essa sensação de familiaridade sem conseguir lembrar. Fazia algum sentido, se eu não o tinha reconhecido é porque nunca o tinha conhecido.
Hoje iríamos almoçar todos juntos, uma espécie de confraternização pelo início do novo modelo de trabalho. Tive a impressão que o novo chefe, o Sandro, fez questão de sentar ao meu lado no restaurante. Tentei manter a cara de paisagem, mas estava estranhamente ansiosa. Agora a sensação convertera-se em agonia. Eu estava incomodada com aquela proximidade. Sentia como se meu cérebro me mandasse uma mensagem incompleta, enviando essas sensações mas vedando o acesso à causa.
Como eu queria lembrar! O que devo fazer pra conseguir lembrar?
Eu estava errada. Não era eu quem tinha que fazer alguma coisa, era ele. E ele fez: pediu mousse de chocolate de sobremesa. Quando o doce chegou, pegou uma colherada e disse, olhando pra mim e dando uma piscadinha:
– Sou chocólatra, sabia?
Aquilo desencadeou um tsunami nos meus neurônios. De repente, lembrei de tudo! Dez anos atrás, ele me dissera exatamente essa frase. Fora numa festa da faculdade, a primeira em que fui. Era uma menina boboca tentando parecer esperta. Não lembrava direito dessa noite porque tinha bebido muita tequila, eu, que até então nunca havia bebido! Lembro de ter acordado pelada, ao lado de um estranho nu, que comia bombons. Quando meu viu desperta, olhou pra mim e deu uma piscadinha, dizendo exatamente aquela frase. Naquele dia, saí recolhendo minhas roupas e fui embora em desespero. Que vergonha, meu Deus. Senti o rosto esquentar.
Olhei pra ele, que me encarava rindo:
– Estou vendo que tu também lembrou…
Pena que o chão não se abre quando a gente precisa!

 

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