perdeu

Denise Accurso

Ricardo sabia o que devia fazer. Sabia também o que queria fazer. Pela primeira vez, em muito tempo, as duas coisas eram uma só. Estava calmo, anormalmente calmo. Tinha consciência de que devia isso à mãe de seus filhos. Até então, nunca a havia traído. Ainda não se achava um traidor. Era fiel ao que sentia, à sua essência. Reencontrar a Magali não fora planejado. O que aconteceu entre eles tampouco. Não tinha nada a ver com sua mulher, de quem nada tinha a dizer. Boa mãe, boa companheira, boa pessoa.
Talvez até… boazinha demais. Aquela morna harmonia, o eterno marasmo familiar! Tudo muito diferente do começo. Nada mais restava daquela emoção, daquele tesão louco que fazia com que ele não quisesse se afastar nem por um segundo da Maria. Quando não ficavam juntos, passavam horas nas redes sociais. Casara ardentemente apaixonado, casara para estar com ela todos os dias de sua vida. E,casado, queria estar com ela todos os minutos que não estavam ocupados com trabalho e outras obrigações.
A ideia de ter um filho com ela o deslumbrava. Seria a perfeita fusão, a união suprema, ele com ela, ele nela, dentro dela, parte dela. Ficou encantado com a gravidez, foi participativo, envolveu-se em tudo, esteve lá no parto.
O que veio depois foi meio decepcionante. Nunca tinha tido a coragem de confessar isso a si mesmo, mas Maria tornou-se tão focada no filho… Não tinha ciúmes nem pretendia competir,mas as coisas mudaram muito pra pior. De repente, já não havia mais muito tempo livre. O dinheiro também parecia simplesmente evaporar. Maria estava menos vaidosa, já não ia tanto ao salão de beleza, nem se vestia tão bem quanto antes. Queixava-se de cansaço quando ele dava o que acreditava serem pequenas indiretas.
De forma totalmente inesperada veio a segunda gravidez. Enfim, com o tempo, adaptou-se àquela nova vida. Amava muito seus filhos, mas com relação à mulher… sentia ter perdido o interesse por ela. A culpa não era dele, ele não mudara, nem fisicamente, nem de qualquer outra forma. Fora ela quem mudara e o relegara a um segundo plano.
Quando reencontrou a ex-namorada… isso mudou. Só ele importava. Não havia cobranças, crianças a cuidar, roupas para estender, compras de fraldas e outras coisas que faltavam nos horários mais inconvenientes. Era bom! Magali tinha ganhado alguns quilinhos e rugas nos olhos, mas continuava atraente, sempre em cima do salto, cabelo e unhas impecáveis, roupas modernas e sensuais. Era muito feminina, usava echarpes e joias, nunca estava sem batom.
Sentiu-se renovado, valorizado, amado. Amado como não era em sua própria casa. Magali o tratava como se ele fosse o centro do mundo. Embora amasse os filhos, isso não lhe bastava. Assim, criou coragem para ter a conversa.
– Maria… Preciso te dizer uma coisa.
– ué, fala!
– Eu… estou apaixonado, Maria. Quero ir embora.
Há um silêncio tenso, que parece durar uma eternidade.
– Que é que eu posso te dizer? Faz tempo que tu não estás aqui de verdade, mesmo. Faz tempo que sei que não posso contar contigo. Levei tempo pra perceber o grande egoísta que tu és. Vai, pode ir. Mas vai agora!
De repente, uma fúria parece dominar Maria. Ela está transtornada. Vai para o quarto. Ele a segue. Ela começa a tirar a roupa dele do armário.
– Então é assim. Vai ser bem mais fácil para mim cuidar apenas de duas crianças, em vez de três. Porque tu não passa de um bebezão, Ricardo. Uma criança egocêntrica. Vai, vai, vai embora de uma vez! Some da minha frente, some da minha casa, some da minha vida!
Com as mãos cheias de roupas, ela chora, amargurada. Ele vira as costas e sai. Vai ter tempo pra ele ir e acertar os detalhes práticos, pegar suas coisas, etc.
Ricardo está embriagado com sua própria coragem de assumir as rédeas de sua vida, de sua felicidade. Podia ter continuado ali, vegetando, morrendo aos poucos… Ou ir levando as duas relações em paralelo, mas não! Tivera coragem para fazer essa virada, começar de novo, apostar no amor, na vida!
É nesse espírito de euforia que chega à casa de Magali. Toca a campainha. Esfrega as mãos. Ela abre e não esconde a surpresa.
– Tu por aqui em pleno sábado! O que houve?
– Falei com ela. Saí de casa. Finalmente vamos poder ficar juntos, sem mais segredos nem mentiras!
A empolgação de Ricardo diminui. Ele sente, de forma não muito clara, que Magali não parece ter ficado tão feliz como ele imaginara.
– Algum problema?
– Não, nenhum. É que foi tão inesperado! Tu podias ter ligado. Já tinha combinado de ir com a Ju num pub que abriu perto da casa dela. Mas entra, entra!
– Não quero atrapalhar teus planos…
– Tu podes vir junto, se quiser. Ou me esperar aqui, como tu achares melhor.
– Sabe de uma coisa? Vai. Até vai me fazer bem ficar um pouco sozinho. Hoje não estou com astral para pub.
Depois de Magali sair, Ricardo começa a olhar em volta e pensar que aquele talvez seja seu novo lar. Detecta algumas coisas que pretende melhorar, reparos a serem feitos. Um olhar mais detalhista revela que Magali não é exatamente uma rainha do lar: há poeira e teias de aranha que ele nunca teve tempo de notar antes. O banheiro está coberto de cabelos, no box, no chão, na pia. Ri com a descoberta dessa mulher com falhas.

………………………………………………………………………………………………………………………………………………

Naquele sábado abafado Ricardo sai cedo da cama e de casa. Vai pegar os filhos, é seu final de semana. Alugou um apartamento na praia para passar com eles. Magali deixou muito claro que,naquele fim de semana, não contasse com ela para entreter, cuidar e alimentar seus filhos. Ele não entendia. Mesmo ela sempre tendo dito que não era muito chegada em crianças, achou que com os filhos dele seria diferente. Ué, ela não dizia que o amava? Isso, obviamente, incluía seus filhos. Ela era mulher, nada mais natural que assumisse algumas tarefas inerentes ao instinto maternal que, acreditava ele, estava presente em toda mulher. Será que Magali não era normal?
Ela era muito reclamona e péssima dona-de-casa. Largava muitas indiretas quanto a estar sobrecarregada e precisar de ajuda. Ajuda com o quê? Pediam comida pronta e tinham faxineira, dois luxos que não tinha com Maria. E não deveriam ter, ela tinha tempo de sobra, se não passasse toda a manhã de sábado no salão de beleza, podia perfeitamente dar conta de manter a casa limpa. Mas não, a mulher era um poço de vaidade, fazia questão dessas futilidades para as quais Maria jamais dera qualquer importância. Isso o irritava, seu dinheiro estava curtíssimo, a pensão,as contas de luz e condomínio que Magali insistia que ele pagasse… Ela tinha dinheiro de sobra, sempre chegando em casa com sacolas do shopping. Que mulher egoísta! O que tinha visto numa pessoa assim tão mesquinha?
Lembra com saudade do tempo em que tinha dinheiro pra sair, ir a bares e restaurantes. Agora, com a grana curta, só saía com os filhos. Esses eram momentos preciosos mas extremamente cansativos para ele, agora que Magali deixara bem claro que não pretendia ajudar.
Chega ao prédio em que já morou e toca o interfone. Maria atende:
– As crianças estão descendo!
– Porque essa pressa, Maria? Não posso subir e tomar um cafezinho antes de pegar a estrada?
– Não. Não pode. Já conversamos sobre isso. Não insiste, Ricardo. Tu não consegue separar as coisas, então é melhor nem subir.
Chegam as crianças com suas mochilas. Todos se acomodam no carro, felizes com o passeio. Ricardo se emociona:
– O pai estava com saudade! Até queria subir pra tomar um cafezinho. Mas a mãe de vocês não quis…
– Pai, não esquenta. Deve ser porque o Marco está lá.
– Marco? Que Marco?
– O namorado da mãe.
A pisada no freio foi involuntária. A sensação de perda que Ricardo sentiu, também.

 

voltar para página do autor