Reclusa

Denise Accurso

“Fique em casa! Fique em casa! Fique em casa!” Esse novo bordão nacional era música para os ouvidos de Larissa. Ficar em casa era tudo que ela queria. Nunca fora de sair, preferia o conforto e a segurança de tudo que era familiar e inofensivo. Ia trabalhar e voltava pra casa. Jamais participou de qualquer confraternização de trabalho. No começo, arrumava desculpas pra não ir; com o tempo, deixaram de convidá-la, o que representou um alívio. Falavam abertamente na sua frente de encontros para happy hours e coisas assim. Quando surgia um certo sentimento de exclusão, pensava que realmente não queria participar e que os colegas já sabiam disso, não a convidando apenas por essa razão.
O home office veio a calhar; era a realização de seus sonhos. Acabou a perda de tempo escolhendo roupa, maquiando-se, indo a cabeleireiros arrumar unhas e cabelo. O tempo rendeu, mostrou mais produção assim. Não havia mais colegas conversando à sua volta, distraindo-a com os detalhes insignificantes de suas vidas. Como era cansativo, meu Deus, ouvir que o filho de um teve febre, que o marido de outra tinha trocado de carro… Achava que as pessoas eram entendiantes, as conversas, as convenções sociais… A obrigatoriedade de festas de aniversário, de chás de panela, de fralda, de casa nova, do raio que o parta! Não estava completamente livre, havia reuniões on line semanais, mas eram muito mais objetivas.
Também a vida familiar ficou mais simples. Não precisava mais inventar desculpas. Quando algum parente tentava alguma interação pessoal, o advertia, fazendo um sermão sobre a pandemia e a irresponsabilidade de quem tentava fazer reuniões. Assim, seus pais e primos foram deixando de tentar estabelecer contato.
Aquela manhã, entretanto, não estava muito bem. Fez um café bem forte e bebeu. Não sabe o que houve, o café escorreu pelo queixo, encharcou seu pijama. Sentiu a dor da queimadura mas não teve reação. Procurou, nas profundezas do seu cérebro, o que se devia fazer nesses casos. O que se faz quando um liquido quente se derrama em nossa roupa e machuca nossa pele? A dor e os pensamentos a agoniavam. Como podia não saber?
Pensou vagamente em pedir ajuda. Mas a quem? Não havia mais ninguém em seu mundo. Foi até o banheiro, olhou no espelho e viu uma velha estranha, de cabelos grisalhos e desgrenhados, olhar apavorado e a roupa cheia de café. Abriu a boca, queria perguntar à estranha criatura que a olhava no espelho quem era ela, qual seu nome, o que fazia ali, mas não conseguia saber como fazer os sons saírem de sua boca. Tentou e só ouviu um “aaaahhhhh”, como se tivesse desaprendido a falar.
Sentia lágrimas escorrendo por seu rosto. Não sabia secá-las. Sentou no chão do banheiro. Sabia que havia algo que devia fazer, mas não lembrava bem o quê. Algo relativo a trabalho. Tinha que ligar um aparelho e usá-lo para falar com pessoas. Olhou em volta de si; nada reconheceu. Não sabia o que deveria fazer. Desejou alguém ali, presente, que lhe dissesse seu nome, quem era, que a amparasse, que a abraçasse.
Agora havia uma ardência e umidade no pescoço. Afastou as mãos de si mesma. Tinha se arranhado e sangrava. Deitou-se no retângulo de pano que estava diante de uma espécie de monumento de louça. Enfiou o rosto úmido entre os joelhos e esperou alguém chegar.

 

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