A reinvenção do ritual

Bruna Agra Tessuto

Começa mais um Porto Alegre em Cena. Você analisa a sua agenda e compra o ingresso para o dia escolhido. Na data em questão, você sai de casa e se dirige ao local do espetáculo. Você encontra parte da classe artística, conversa. Está perto da hora de começar. Você senta para assistir. O celular é desligado, as luzes da sala se apagam. Seu foco é no palco. O ator entra. Mas, espera: corta tudo isso. O ritual agora é outro. Naturalmente, a experiência também.

Essa é uma questão que se enquadra ao começarmos a debater o espetáculo Carcaça, de autoria e direção de João Gabriel OM e João Pedro Madureira, exibido pelo 27º Porto Alegre em Cena, em 2020. Vivendo a pandemia decretada pela Covid-19 e, por consequência, assistindo espetáculos através de uma tela, a questão de forma e conteúdo ganha ramificações passíveis de discussão. Afinal, um vídeo pode ser considerado um espetáculo teatral?

Há quem afirme categoricamente que não. Há quem chame de espetáculo de ocasião ou de emergência, afinal, é o que o momento permite. Pessoalmente falando, quando terminei de assistir, a minha primeira reação foi questionar por que eu havia sentido João Gabriel, que também atua como performer, mais potente na parte inicial do que no restante. E a resposta veio assim que recebi a informação: aquele trecho era feito ao vivo. Era a presença decretando sua soberania, ainda que através de uma tela. A troca entre artista e público feita ao vivo, ainda que, também, através da mesma tela. A arte do encontro, seja ela como for, sendo a chave do espetáculo.

Ao terminar essa primeira parte ao vivo, percebi um breve corte entre a obra e eu. Recorri, então, ao ritual que eu sabia que poderia ajudar: desliguei o celular e apaguei a luz. Não é por acaso que isso é feito em uma sala de espetáculos, é o que contribui para que a nossa conexão seja instaurada, para que a concentração aconteça. Fazendo isso, fiquei com o foco somente na tela do computador. E, apesar da dificuldade com a forma, consegui me envolver com o conteúdo.

Conteúdo este que instiga. Conteúdo que, mesmo sendo muito discutido atualmente, ainda parece distante de ser encarado como natural. Se eu tivesse que resumi-lo em duas palavras, eu escolheria “corpo” e “homem”. Fomos ensinados que um corpo com um pênis pertence a um homem. Isso nos foi passado como verdade absoluta. Mas e se alguém que tem esse corpo disser que não se define como homem, o que você diria?

João Gabriel aparece ao vivo apenas em dois momentos. E em ambos questiona o público. Faz perguntas. Admito que fiquei surpresa com a rapidez das respostas. Penso que, se fosse em uma apresentação presencial, o tempo de resposta seria mais longo. O ritual estabelecido dentro de uma casa de espetáculos talvez gere isso, uma demora para o público se permitir colocar a voz e participar. Agora, estando no seu quarto, em uma posição de conforto, a plateia se sente, literalmente, mais em casa.

Não sabemos até quando isso vai. Assim como o conteúdo de Carcaça, a pandemia é atual. Só que não é de hoje que as possibilidades artísticas se misturam. Talvez não exista ainda uma nomenclatura fixa para a forma dos espetáculos que estamos assistindo. Talvez essa nova forma siga tendo vida pós-pandemia. Talvez a gente se acostume com ela. Entre tantos talvez, o que não dá pra negar é: estamos passando mais uma vez por ela, pela reinvenção.

 

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