Por que não advogo

Denise Accurso

– Eu estava aqui pensando… Tu não vais aproveitar agora, aposentada, e voltar a advogar? Podias fazer disso quase um passatempo, já que tens a renda mensal garantida!
– Nossa, amiga. Essa ideia nem me passa pela cabeça. Quando desisti de advogar, foi definitivo. E não preciso de mais passatempos, já tenho tantas coisas pra fazer que antes não conseguia por falta de tempo!
– Não te entendo, Dulce. Tu devia ser uma boa advogada. Por que desperdiçar isso?
– Eu lembro exatamente do instante em que decidi que essa vida não era pra mim. E já lá vão quase 30 anos… Fazia tempo que não pensava nisso. Vou tentar te resumir como era a vida de uma recém formada, sem parentes importantes e vinda do interior.
As duas riram da homenagem ao Belchior.
– Aquela época era um divisor de águas, mas é claro que eu não sabia disso. Aquela advocacia meio romântica, do cara sozinho e uma máquina de escrever estava se inviabilizando. A complexidade dos procedimentos, a evolução tecnológica levou à estruturação dos grandes escritórios, cada vez mais especializados. Mas, como te disse, isso não estava tão claro naquele tempo. Não sei se já te contei, mas, na minha turma, havia 60 formandos, e só 13 saíram dali já com a carteirinha da OAB. Fui um desses treze.
– Que legal!
– Ainda lembro, na formatura, a presidente da Ordem nos entregando as carteiras e dizendo que nunca esquecêssemos que éramos “essenciais à administração da justiça”.
Dulce parou pra tomar um gole de água e controlar um pouco a emoção que as lembranças estavam desencadeando.
– Pois bem. Eu e uma colega de faculdade decidimos começar assim, na cara e na coragem, logo depois da formatura. Conseguimos sublocar um espaço onde já funcionava um escritório. Ali, partilharíamos banheiro e cozinha mas teríamos uma sala só nossa. Tínhamos que pagar o condomínio e “dar uma mão”. Essa mão era quase sempre representar o papel de office-girl.
As amigas riram de novo.
– Fazíamos “clínica geral”, ou seja, qualquer coisa que aparecesse. Atendemos muitos parentes e amigos íntimos de graça, e às vezes sequer as custas conseguimos obter de volta. Achávamos graça e acreditávamos estar semeando para o futuro. “Advogar leva cinco anos para dar dinheiro”, era o que nos diziam. Mas nada disso me fez desistir.
– Então o que foi? Conta, conta!
– Foi uma cliente. Não lembro de onde ela saiu, nem do seu nome, mas lembro dela como se estivesse aqui, na minha frente. Rosto, voz, roupa… Era uma mulher baixa e gordinha, com um ar muito simpático. Chegou e antes mesmo de falar já estava chorando. Quando se acalmou, disse que precisava de ajuda pra levar a filha de volta pra casa.
– Como assim?
– A filha dela, de apenas 14 anos, tinha saído de casa e, segundo ela, “caído na vida”. Veja, estou falando de um tempo jurássico, antes dos Conselhos Tutelares e das leis de proteção ao menor. Eu e minha amiga tomamos notas e pedimos um tempo para estudar o caso. E era exatamente isso que iríamos fazer, estudar, pois não tínhamos ideia de que procedimento adotar. Combinamos dela voltar dali a dois dias.
– E a guria andava na rua?
– Foi o que achamos ao falar com ela. Não vou lembrar de tudo, mas descobrimos que a guria estava na Febem. E também descobrimos que tinha um B.O. da guria contra a mãe. Bom, né, esperamos a senhorinha com um monte de perguntas entaladas na garganta. Isso é bem normal, o cliente não te contar a história inteira, mas sim uma versão onde ele é o mocinho. Já tínhamos passado por isso outras vezes.
– Só imagino…
– Pois é. Quando ela chegou, falamos de nossas descobertas e lembro de ter dito que, para ajudá-la, eu precisava saber da história toda. E ela me contou… Contou que tinha um companheiro e que ela tinha implicado com ele. Ele era um amor com ela, todo atencioso, levava presente, mas ela era desaforada com ele. Um dia eles tinham tido uma discussão, quando ela não estava em casa, e o homem, enfurecido, tinha virado uma estante pesada por cima da guria, que teve fraturas e não voltou mais pra casa. Aí vieram as lágrimas de novo: “não quero ter que escolher entre meu marido e minha filha. Tenho direito de ficar com os dois!”
– Virou uma estante em cima da guria? Que horror!
– Olha, amiga, eu tive certeza de uma coisa, ali tinha rolado uma tentativa de estupro. Não é à toa que o rolo se deu na ausência da mulher. Mas, mesmo que não seja isso, alguém derrubar uma estante na tua filha e ela sofrer fraturas, e essa filha preferir sair de casa… O nível de violência devia ser grande. Autointernação na Febem, só soube dessa. Fiquei enojada, olhei bem dentro dos olhos dela e disse que o caso não me interessava. E nesse dia me inscrevi em dois concursos.
– Ai, amiga. Agora te entendo…


 

voltar para página do autor