Intimidade

Denise Accurso

Hoje vou começar. Já faz três meses, tempo demais. Tenho que ter coragem. Tentar lembrar das coisas boas… vai ser hoje.
Entro no quarto em penumbra. Abro as narinas, inalo os cheiros, tento reter tudo, se não nos pulmões, ao menos na memória. Vou até a janela e a abro. Faz 93 dias que não se abre esta janela.
Sinto que as lágrimas estão chegando. Deixo. Que importa? Deixem-me chorar, tenho esse direito. Já é muito eu estar disposta a essa verdadeira empreitada. Preciso também desfrutar do lado bom, os cheiros e as memórias. Nem tudo precisa ser tristeza. Há uma doçura em mexer nas coisas dele. Isso era impossível quando ele ainda estava aqui. Tinha um ciúme furioso do que chamava “minha privacidade”. Tudo sempre debaixo de sete chaves, não me deixava limpar nem arrumar nada. Não que houvesse necessidade disso, era um rapaz caprichoso, com o quarto e com ele mesmo. Adorava perfume, estava sempre cheirando bem. Saudades, meu Deus!
Começo pelas prateleiras sob a janela. Livros, fotos, alguns objetos de decoração. Era tão caprichoso, o meu Gabriel! Vou colocando tudo em caixas, folheio os livros, pra ver se não tem alguma coisa dentro. Encontro recortes de jornal, reportagens sobre alguns crimes locais. Gabriel sempre gostou do assunto, queria ser investigador.
Separo algumas fotos, umas pra mim, outras pra namorada. Ou ex-namorada? Como se referir àquela moça que namorou meu filho até o dia de sua morte? Não sei.
Vou sem pressa, selecionando, examinando tudo. Passo para a mesa de cabeceira, encontro chaves que deixo de lado, pois não sei para que servem. Também acho uma grande quantidade de camisinhas. Sorrio: esse é o meu filho. Um gato, assediadíssimo pelas garotas, mas muito cuidadoso com ele mesmo. Sei que ele aproveitou muito essa atração que exercia.
Já estamos na metade da tarde. Vou para o roupeiro. Quando o abro, caio de joelhos diante do impacto de ver aquelas roupas ali, abandonadas, tantas vezes usadas por ele. Consigo levantar e as abraço, respirando fundo, levando aquelas partículas do Gabriel para dentro de mim.
Vou tirando, dobrando e classificando o que vai ser doado e para quem. Um trabalho lento, às vezes dolorido.
É quase noite e o roupeiro está vazio, exceto por uma caixa de metal, um pouco maior que uma caixa de sapatos. Parece ser uma espécie de cofre. Está leve, mas não está vazio, quando o sacudo, percebo o deslocamento de algum objeto.
Paro um pouco e acendo a luz. Lembro das chaves que deixei de lado, uma delas deve abrir a caixa metálica. Sento na cama. Bingo! Uma das chaves serve. Abro a tampa. Lá dentro, vejo um emaranhado de tecidos, rendas, sedas… começo a retirar aquilo da tal caixa. Examino melhor. Parecem… calcinhas. Mas calcinhas em mau estado, algumas rasgadas, outras com manchas marrons, brancas… Além das calcinhas – são umas dez, onze –, encontro um celular e seu carregador. Então era aquilo que fazia barulho!
Agora estou me sentindo envergonhada. De alguma forma, aquilo é uma violação de privacidade. Sei lá, se o Gabriel gostava de colecionar calcinhas… talvez das meninas com quem ele ficou… os homens são seres tão estranhos!
Enfim… Agora vou até o fim. Tento ligar o celular, mas ele precisa ser carregado. Plugo-o e o ligo. Não há nada ali, nenhuma ligação, nenhum número agendado. A única coisa que encontrei são as fotos. E os filmes.
Não quero ver, mas não consigo largar. Vou até o fim. Vejo tudo. O horror vai tomando conta de mim. Aquelas cenas de estupro e de violência extrema… Que raio de fetiche absurdo aquelas pessoas praticam? E as moças…
Um congelamento começa a tomar conta do meu corpo. Não quero acreditar, mas ali estão as evidências. Essa moça loura é a mesma de um dos recortes de jornal, dada como desaparecida há cerca de um ano.
Como um robô, pego os recortes e começo a comparar com os rostos torturados das mulheres naquelas cenas de puro horror. Desaparecimentos ou assassinatos não solucionados. São onze os ali documentados. O horror é grande demais, sei que não consigo suportar.
Ainda bem que ele está morto!

 

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