Falecimento

Denise Accurso

Jane estava chegando em casa, cheia de sacolas, tentando pegar a chave perdida na escuridão do interior de sua bolsa, numa espécie de contorcionismo para não deixar nada cair. Justamente nesse momento o celular tocou. “Ai, paciência. Depois eu ligo de volta”.
Conseguiu entrar sem derrubar nada. Largou as compras do supermercado na cozinha, correu para o banheiro, começou a por em prática seus protocolos de chegada em casa. O celular ficou lá, esquecido entre a miríade de objetos uteis e inúteis que residiam dentro daquela bolsa.
Mais de uma hora depois o som insistente chamou a atenção de Jane. O esquecido celular tocava mais uma vez. Ela o pegou.
– Sim, sou eu. Jane Martins. Sobre o que seria?
Ouviu sem muita atenção a voz do outro lado identificando seu emissor. Em seguida veio a notícia: “lamento muito informar que seu irmão faleceu”.
Vários segundos de silêncio enquanto seu cérebro processava aquela informação. Fazia muito tempo que não tinha contato com o irmão. Sequer sabia como fora localizada.
A seguir veio o choque. Sentou-se, gaguejando ao telefone, pedindo explicações, detalhes. O irmão três anos mais novo! Como isso foi acontecer? Como me localizaram? Quem está falando?
– Sou o sogro dele. Estávamos tentando localizar algum familiar.
Então ele tinha casado! Teria filhos? Teria cuidado desses filhos? O prognóstico não era dos melhores para essas crianças, caso existissem, com um pai como aquele. Ela não o odiava, não mais, mas tampouco conseguia lamentar. Lembrou da última interação entre eles, das palavras agressivas que trocaram. Os olhos se umedeceram.
De posse de várias informações – endereços, horários, telefones – Jane desligou.
Teve uma noite agitada, povoada de sonhos e recordações. Acordou indisposta, com dor de cabeça, cheia de dúvidas. A cerimônia fúnebre seria às onze horas da manhã. Avisou no trabalho que não iria, que seu irmão havia falecido. Continuou deitada, olhando para o teto, sem saber muito bem o que fazer.
Levantou. Tomou um remédio pra dor de cabeça. Sem que tivesse decidido, foi se arrumando e saindo na direção do cemitério.
Acima de tudo, a curiosidade a movia. Que teria sido feito dele? Que tipo de morte teve? Provavelmente teria morrido de forma violenta. Lembrou de histórias antigas contadas pela sua madrasta, em que as pessoas tinham a morte segundo seu mérito. Se você for bom, vai morrer tranquilo, dormindo, cercado de entes queridos. Se não, morrerá sozinho, cheio de dor e medo. Haveria mesmo tanta lógica em nossas partidas? Gostava mais dessas histórias que daquelas que previam castigos após a morte. Achava injusto ter que pagar por toda a eternidade os erros cometidos, muitas vezes, em momentos de desatino.
Mergulhada em reflexões, chegou ao local e logo achou a capela em que seu irmão estava sendo velado. Estava lotada.
Entrou. Dirigiu-se ao caixão. Lá estava ele, facilmente reconhecível. Uma mulher se aproximou.
– Você deve ser a irmã dele. Meu Deus, como são parecidos!
E começou a chorar. Jane a abraçou e repetiu o velho chavão:
– Meus sentimentos.
Não resistiu e perguntou:
– Qual foi a causa do falecimento?
A mulher a olhou entre lágrimas.
– Coração. Ele sabia que era cardiopata, se cuidava muito. Mas, aí, veio o infarto.
Levou as mãos ao rosto. O choro cresceu. Sem jeito, de forma canhestra, Jane a abraçou.
– Ele era tudo pra mim. O melhor companheiro. Maravilhoso, carinhoso, divertido, prestativo… Todos o adoravam.
Jane ouvia, cética. Sabia desse processo de santificação imediata dos mortos. E conhecia muito bem o próprio irmão. Divertido ele era. Agora, carinhoso, prestativo… quanta imaginação daquela mulher!
Desvencilhou-se da melosa cunhada e circulou entre as pessoas, ouvindo fragmentos de conversas: “excelente pai”, “ótimo amigo”, “nossa! Devo muito a ele. Quando minha mãe adoeceu, ele…”, coisas assim. Obviamente nada ouviu de negativo, nem seria de se esperar que isso acontecesse.
Um senhor se dirigiu a ela:
– Jane, meus sentimentos. Sou o sogro do seu irmão.
Os olhos do homem estavam congestionados, vermelhos.
– Após a cerimônia, a família vai se reunir para almoçar. Gostaríamos muito de contar com sua presença. Sabe…
O homem parecia hesitante.
– Não sabemos muito do passado do Jaime. Ele nunca contava nada, dizia que o que importa é o presente, etc. Talvez você possa nos dizer porque ele não queria saber do passado. Sempre tive essa curiosidade.
“Será que o senhor quer mesmo saber”, pensou ela. E, em voz alta:
– Tenho a mesma curiosidade que o senhor, mas acerca da vida dele. Não sabia que ele era casado, fico imaginando se teve filhos…
A expressão do homem foi de assombro.
– Pensei que você soubesse. Sim, eles têm dois filhos, meus netos, minha alegria…
E começou a chorar. Mais uma vez coube a Jane consolar aquele estranho de uma perda que ela mesma não conseguia lamentar. Assim que foi possível escapar com dignidade, o fez.
Prestou pouca atenção no que aconteceu depois, concentrada em seus pensamentos. Quando se deu conta, estava recebendo pêsames e despedidas daquelas pessoas que pareciam se importar com seu irmão. Era hora de ir.
Seus sobrinhos estavam no almoço familiar. Eram dois meninos parecidos, com pouca diferença de idade. A cunhada a fez sentar-se ao seu lado. Houve uma espécie de discurso, alguns lenços foram puxados.
Sentia muita vontade de ir embora, mas também a necessidade de saber mais. Lembrou da peça Antígona, que assistira há tantos anos, e que tanto mexera com ela, especialmente quando a personagem dizia que poderia casar de novo, ter novos filhos, ser adotada e ter novos pais, mas jamais poderia ter um novo irmão com quem dividir a infância. Na época, ainda estava cheia de raiva. Hoje acreditava nada sentir, mas esse nada estava se desvanecendo e dando lugar a essa sensação de perda irreparável.
A cunhada percebeu sua emoção. Tomou-a pela mão e foi com ela ao banheiro. Enquanto Jane se recompunha, disse:
– Eu sei o que aconteceu entre vocês. Jaime me contou no hospital. Ele sentia muita culpa pelo que fez à família. Acho que essa culpa o ajudou a ser uma pessoa melhor.
Jane agora chorava francamente, as lágrimas escorrendo.
– Ele era jovem, ganancioso, estava usando muita droga naquela época. Ele mudou depois, de verdade. Sei que se arrependeu, disse que pensava nisso todos os dias. Nunca pode pedir perdão. Mas ele aprendeu a lição. Construiu uma vida digna. Tornou-se uma pessoa honesta.
– Mas ele… tirava tanto deles… ainda por cima… bateu neles… no pai, na mãe… quebrou o braço da minha mãe. Levou todo o dinheiro dos dois. Quando eu cheguei pra socorrê-los, quase bateu em mim também!
– Eu sei, eu sei. Deve ter sido horrível, mas acredite, esse cara não existia mais. O Jaime que eu conheci não machucaria ninguém. Sei que o que ele fez foi grave. Mas faz tanto tempo… Será que não dá pra tentar perdoar?
Jane olhou para a cunhada. Estava inclinada a lhe dar razão. Mas era difícil se desfazer dessa mágoa tão antiga.
– Vou tentar.

 

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