Eleição de 1982

Denise Accurso

Em minha cidade houve segundo turno na eleição para prefeito. Meu filho me levou de carro para votar, mesmo sendo perto de casa, pois ainda estou meio fragilizado da Covid-19.
Digitei os dois algarismos e ouvi o som da urna eletrônica. Que alegria! Sei que não precisaria ter votado, seria fácil justificar… Acontece que valorizo muito esse direito.
Enquanto procurava meu filho, a máquina do tempo que trago embutida em minha cabeça acionou suas engrenagens e me jogou em 1982. Lá estava eu, jovem, cheio de vida e de otimismo! Íamos todos votar, alguns pela primeira vez, como eu, outros, como meus pais, após um longo período sem poder exercer esse direito. Eu era extremamente engajado, participava da ala jovem do MDB. Acredite quem quiser, havia apenas dois partidos, o do poder, o da dita ditadura, e o MDB. As coisas eram tão fáceis! Essa dicotomia simplificava tudo, grêmio ou inter, calor ou frio, doce ou salgado, o Bem ou o Mal. Obviamente eu sabia estar do lado do bem. Quanta segurança, quanta certeza a juventude traz!
Lembro com saudade da militância. Temíamos que a qualquer momento a tal de abertura fosse lacrada. Não era possível confiar completamente na imprensa amordaçada. Não cheguei a me envolver em conflitos físicos ou guerrilhas, era jovem demais naquela época, mas conheci “companheiros” (naquele tempo essa expressão se aplicava a todos que lutavam pela democracia) que o fizeram e sofreram as consequências. Não eram somente prisões ou torturas, não, havia formas menores e menos divulgadas de perseguição. Perder o emprego, por exemplo, e não conseguir outro. Ou o que aconteceu com meu pai.
Isso foi na época do famigerado AI-5, quando tudo se permitia em nome da segurança nacional. Como se segurança nacional excluísse a segurança dos cidadãos! Um dia, bateram na porta de casa à noite, coisa extremamente incomum, até onde me lembro. A mãe abriu a porta e lá estavam dois sujeitos uniformizados, perguntando pelo meu pai. Ele veio, de bermuda velha e sem camisa, os dois homens o pegaram pelos braços e disseram:
– O senhor está detido para interrogatório.
E se foram. Ignoraram completamente minha mãe, que perguntava, torcendo as mãos: “pra onde vão levá-lo? Até quando ele está detido? Qual a acusação?” Quando a mãe me viu, mandou eu ir para o quarto e não saí de lá.
O pai voltou muito cedo pela manhã. Estavam muito assustados, ele e a mãe. Eu saí do quarto e ele me abraçou. Sentei na perna dele e o ouvi explicar: “foi por causa do Amilton”. Esse colega de meu pai era “comunista”. Na verdade, de forma anacrônica, ele pregava a anarquia, distribuía folhetos, tentava angariar apoiadores. Nunca mais se soube dele.
Aquele nosso voto de 1982 para governador do estado era o início de algo grandioso, assim eu sentia. Fiquei diante da longa lista de eleitores até encontrarem meu registro, senti um orgulho imenso colocando meu voto preenchido na urna. Tantos amigos meus diziam que isso não ia adiantar nada, que o resultado seria manipulado, que se tratava de uma farsa. Havia esse receio, de fato. A suposta eleição poderia ser apenas jogo de cena, um teatro para contentar os descontentes. Comparo o que sentíamos àquilo que imagino sentir o sequestrado ao se deparar com uma porta entreaberta: seria verdade?
A apuração levaria dias, horas? Não sabíamos.
Saí do meu local de votação e a Úrsula estava me esperando. Lembro disso como se fosse ontem. Lembro do cabelão dela, as mulheres usavam os cabelos bem altos em torno da cabeça. Ela já tinha votado e me esperava, com aquele olhar cor de mel que tanto me encantava.
– Pra quando o resultado, amor?
– Já te disse mil vezes, vou buscar amanhã.
De quando saiu o resultado da eleição, não lembro. Mas o do exame de gravidez, lembro muito bem!
Perdemos a eleição. Por pouco, mas entrou o candidato da situação. Mas o exame de gravidez… Ganhamos. Ganhamos nosso primeiro filho.
Lá está ele. Com os primeiros fios de cabelo branco aparecendo em sua cabeça jovem. Está me procurando, vou lá.

 

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