Cachoeira

Denise Accurso

A mulher estava sentada sobre uma toalha, escutando e vendo a água da cachoeira. Pela primeira vez em muitos anos permitiu ser invadida com a intensidade daquele momento. Alguns respingos chegavam até sua pele. Ela sentia tudo.
Por tantos anos não estivera no presente! Sempre estava pensando no que viria a seguir, ou então no que poderia estar perdendo. Comia pensando na próxima garfada. Ia trabalhar pensando na folga. Agora estava ali, por inteiro.
– Li!
A voz que a chamava pareceu tirá-la de uma espécie de transe.
– Li! Tu devias descer! É lindo lá embaixo! Dá pra entrar por trás da queda d’água. Uma experiência única!
Liana sorriu. Como explicar ao marido que também vivera uma experiência única? Ele não acreditaria. Coisas assim não faziam parte da mulher ávida que ele conhecia, sempre querendo mais, sempre querendo dar um passo adiante. Olhou para ele e viu um estranho. Essa percepção a chocou um pouco. Chegou a duvidar de si mesma. O que estaria errado com ela? Devia estar com algum problema mental, algum fiozinho solto. Aquele homem era seu marido há quase trinta anos, o pai de seus filhos. Eles se conheciam tão bem quanto duas pessoas podem se conhecer. Era isso, justamente, o que a incomodou. Como ele não estava percebendo o quanto ela estava diferente? Enfim, talvez não estivesse sendo justa com ele.
– Não vou descer, Fernando querido. Está tão bom aqui que não preciso de mais nada!
Agora foi Fernando que se espantou. A Li sempre queria tudo, ver tudo, participar de tudo. A pior coisa, para ela, era ser deixada de fora de alguma coisa. Ela precisava estar no centro dos acontecimentos, sempre. O que estaria acontecendo​?
– Tem certeza que não quer descer?
– Tenho! Vai lá.
Ficou vendo aquele homem com quem dividia a vida descer animado como uma criança. Viu suas costas alargadas pelos anos, o cabelo com alguns fios prateados, as pernas finas. Viu quando ele puxou assunto com as pessoas que tomavam banho. Ele era assim, charmoso, comunicativo, bem diferente dela, uma pessoa menos expansiva e mais desconfiada.
Estivera muito perto de encerrar aquela relação. Justamente essas qualidades haviam começado a incomodá-la. Ele sempre tão sedutor, tão falante. Tinha a sensação de não ter voz, de não ser ouvida, muitas vezes sentia-se até invisível, como se sua presença, sua fala, sua opinião, não fossem relevantes. Começou a fantasiar com uma vida sozinha… E a solidão se lhe afigurava cheia de encantos. Nada mais precisaria ser negociado ou explicado.
Ele pareceu sentir seu afastamento e afastou-se também. Começaram uma coabitação independente, cada um fazia seus programas e seus horários. Imaginavam-se já separados, cada um com seus planos. Ele percorria anúncios imobiliários, procurava um apartamento pequeno para alugar. Viveram assim vários meses.
Até que ele lhe propôs aquelas pequenas férias. Isso parece ter despertado nela o encantamento de antes. Essa proposta a acordou, ele escolheu um lugar que ela amava, a parceria estava ótima, ela estava se sentindo diferente, tão relaxada, tão… feliz!
Voltando para a pousada, ela enfiou a mão na dele, como costumava fazer. Ele a segurou. “Estive tão perto de jogar isso fora”, pensou, arrebatada. Mostrava a ele pequenos detalhes da paisagem, do caminho, uma pequena suculenta nascendo junto às pedras, pássaros que pousavam e esgravatavam o chão. Sentia-se tão próxima, tão confiante. “Ele não merecia que eu pensasse em deixá-lo. Onde eu estava com a cabeça, meu Deus?”
No quarto, ela sugeriu que ele entrasse no banho.
– Pode ir tu primeiro, Li. Sei que depois tu vais demorar secando o cabelo. Também quero dar uma olhada nas mensagens.
Ela entrou no banho e ele pegou o celular. Abriu o waths.
“E aí? Já falou com ela? Quanto tempo vai durar essa lua de mel?” – leu Fernando. E muitas outras mensagens no mesmo teor, algumas de voz. Ele respondeu: “está mais difícil do que pensei. Ela está sendo muito legal, muito parceira, estou sem coragem”. “E eu? Tu me disse que esse período nas cachoeiras era pra acertarem tudo. Agora o que devo esperar?”
Fernando coçou a cabeça. O que responder? Não sabia mais. Ouviu a porta do banheiro se abrir. Dele saiu Liana, com uma toalha enrolada na cabeça… e mais nada.
Fazia muito tempo que o corpo de Liana estava sempre protegido por camadas de tecido ou pela escuridão. Agora, ela circulava pelo quarto, desenvolta. Esse gesto o comoveu. Era uma entrega, uma total confiança, quase um perdão. Aquele corpo que não era perfeito, que tinha tantas camadas de tempo, alegria, sofrimento, era ao mesmo tempo como a sua casa. Ele o conhecia. Nesse momento, entendeu que a amava. Corpo e alma, tudo junto. Sentiu esse sentimento forte e seu corpo reagiu. Fernando tinha consciência que algo tinha acontecido e mudado toda sua percepção de Liana e do relacionamento deles.
Desligou o celular e jogou-o num canto. Aproximou-se dela e pegou suas mãos. Estava emocionado. Tentou beijá-la. Ela o empurrou, rindo:
– Tu ainda precisa de um banho, seu safado!

 

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