Márcia

Denise Accurso

Era um tempo anterior à internet e à telefonia celular. Tempos mais simples, dirão alguns. Tempos muito mais complicados, digo eu que os vivi.
Estávamos nos anos oitenta. Eu fazia cursinho pré-vestibular, com muita alegria. Saí do meu bairro, o Sarandi, onde conhecia praticamente todo mundo. O Sarandi era quase como uma cidade pequena. Estudei todo o tempo praticamente com as mesmas pessoas, e agora estava rodeada de gente nova. Novas amizades, novos horizontes, uma perspectiva de futuro, que época feliz!
Estudávamos à noite e amizades se formaram inicialmente para grupos de estudo. Acreditávamos todos que teríamos uma vaga em universidade federal e um futuro brilhante pela frente! Era certeza absoluta.
Logo surgiu uma combinação para uma saída de sábado. A coisa complicou-se para mim. O Sarandi fica no extremo norte da cidade, e o ponto escolhido foi na Cidade Baixa, quase no centro de Porto Alegre. Como eu iria me deslocar? A ida nem era problema, combinada para horário em que o transporte coletivo ainda funcionava, mas a volta… Um táxi seria proibitivo. Eu não trabalhava e meus pais, de classe média baixa, não poderiam bancar todo esse custo.
Havia ainda outra dificuldade: meus pais eram bem mais velhos que a maioria. Casaram tarde, tiveram filhos tarde, eram mais de quarenta anos mais velhos que eu. Isso, naquela época, era incomum, as pessoas dificilmente tinham filhos depois dos trinta. Além de mais velhos, eram muito conservadores, ambos oriundos de uma pequena comunidade de descendentes de alemães, religiosos e moralistas. Eu já havia saído à noite, mas sempre com pessoas e destinos conhecidos: uma festa de quinze anos, o casamento de alguém, um encontro numa pizzaria. Agora ia sair com estranhos e ir à Cidade Baixa! Receava não obter permissão.
Foi quando o Alex, um colega, apareceu com uma informação salvadora:
– Márcia, eu sabia que te conhecia. Então tu também és do Sarandi?
– Sou, Alex. Só não me lembro de ti.
– Tu não és irmã da Sílvia?
– Sou…
– Estudei com ela. Acho que até já levei tua irmã em casa. Uma casa de esquina, verde?
– Isso mesmo! Eu não devia estar em casa. Desculpa não lembrar de ti.
– Eu também não lembrava. Se tu não falasse no Sarandi… Lembrei da Sílvia que tinha uma irmã Márcia e achei que devia ser tu.
– Que mundo pequeno!
– Acho que posso ser teu anjo salvador. Pede pra tua irmã avisar que eu vou te buscar. Falo com teus pais se precisar e te levo em casa depois.
– Uau! Isso ia salvar minha vida! Principalmente por tu seres um conhecido da minha irmã.
Tudo foi combinado. O Alex me buscaria às oito.
Esperei, esperei, esperei…
Às onze horas fui dormir. Não tentei segurar o choro.
Segunda-feira cheguei na aula faltando poucos minutos para seu início. Nosso grupinho conversava animadamente, mas, quando me viram, calaram-se.
O Alex me olhava com um ar penitente.
– Márcia… Mil desculpas… Espero não ter te criado nenhum problema. Não imaginava que tua família fosse assim tão severa.
– Do que tu tá falando, Alex? Do cano que tu me deste? Fiquei lá, plantada, esperando até tarde!
– Eu não acredito! Tua mãe não te contou? Falei com ela, disse que era teu colega de aula, que ia te dar carona para o encontro dos colegas, ela fechou a cara, me deu um corridão! Pedi pra te chamar pra pelo menos eu falar contigo antes de ir embora e ela bateu a porta na minha cara.
– Não é possível, Alex. Não estou acreditando que a minha mãe fez isso? A que horas isso aconteceu?
– Eram sete horas da noite quando toquei a campainha.
– Não pode ser. Às sete horas eu estava sentada à janela, cuidando cada carro que passava, te esperando. Só se foi em algum horário em que fui no banheiro.
Os demais acompanhavam esse diálogo, meio fascinados. Sem perceber, o Alex também tinha levantado e falávamos alto, gesticulando muito.
– Peraí, Alex. Tem coisa errada aqui. Estamos sem campainha, as pessoas precisam bater palmas no portão. Será que tu podes descrever a minha mãe?
– Claro! Uma baixinha furiosa…
Márcia o interrompe:
– Minha mãe é alta, quase um metro e oitenta. Alex… Tu errou a casa. Tu errou a Márcia. Três esquinas antes da minha casa tem outra casa verde. Se não me engano, uma das gurias da casa é Márcia também!

 

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