QUENTINHAS

Marta Leiria

Com a pandemia, Clara, que Deus a perdoasse, vislumbrava sua grande oportunidade de atrair para si os holofotes. As dicas de beleza publicadas em redes sociais não emplacaram. Não tinha condições financeiras para investir em preenchimento e botox, artigos de primeira necessidade em estética. Como poderia ressaltar a maquiagem que tentava vender como “senhorinha-propaganda”? É, talvez fosse isso, refletia. Depois de uma vida na labuta como apresentadora de telejornal, agora, já aposentada, sentia uma incômoda sensação de transparência. Já Sônia, colega com quem dividira por longos anos a bancada no programa televisivo, chegara lá. Metódica e previdente, havia se preparado para o encerramento da carreira. Irradiava frescor e jovialidade em fotos que postava. Sucesso estrondoso. E, a dura realidade, nem tencionava vender nada! Clara procurava não se comparar, cada uma tinha sua própria trajetória de vida. Maquinava: likes não dão dinheiro, mas dão prestígio e prestígio dá dinheiro. Optou por distribuir quentinhas a moradores de rua. De quebra, a chance de recuperar sua saudosa visibilidade. Não teria de investir na aquisição dos insumos, ficaria só com a mão de obra. O mercado do bairro e alguns clientes endinheirados, sem filhos, sem contas e mais contas para pagar, e com tempo de sobra para investir em ações solidárias, assumiram essa parte. Clara sequer precisaria botar a mão na massa, outras beneméritas se ocupariam das panelas. Em reuniões para o grande dia repetiam o mantra. Sororidade era a palavra de ordem, uma por todas e todas por uma, sem disputa de belezas. Clara caprichou no visual. Muito corretivo e base no afã de disfarçar a impiedosa passagem dos anos. Quanta euforia ao constatar a presença maciça da imprensa naquela outonal e ensolarada manhã de sábado! Até os repórteres da emissora onde trabalhara se fizeram presentes. Estava exultante com os clicks dos fotógrafos enquanto ela e as voluntárias alcançava os pratos aos necessitados. Uma amiga íntima foi incumbida de se posicionar ao lado dos fotógrafos para capturar seus melhores momentos. Eis que, ao vislumbrar a possibilidade de ampliar o quadro de sócios, a presidente do clube e organizadora da longa fila teve uma luz e resolveu mudar a logística. Faria mais efeito focar no interior daquele clube elegante, que jamais tivera em seu requintado interior gente humilde e coberta de andrajos. Conduziu, então, os fotógrafos à cozinha montada no salão principal. O primor no preparo dos alimentos saltava aos olhos. Mas Clara estava decidida a não se deixar ofuscar e rumou para a cozinha. Liderando com notável maestria as panelas, e alvo de todos os clicks, estava Sônia. Para além de sua natural exuberância, dispensando joias e roupas de grife, exalava genuína disposição de ajudar o próximo. A humildade personificada. Clara, fora de si e aos berros, mandou que fossem todos juntos para o inferno, as quentinhas, Sônia e aqueles pedintes desgraçados!

 

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