Pausa

Marta Helena Fontoura vou

Hoje é dia de ventania. As cortinas valseiam diante das janelas de vidros cerrados. É pelas frestas que o vento se impõe sem cerimônia. Dá duas voltas e só encontra o silêncio. Faz tempo que o pulsar do relógio estancou. Os tacos do chão pararam de ranger, esquecidos que foram pelo caminhar do senhor de cabelos brancos. O tampo de vidro da mesa agora aparece por inteiro. A senhora espevitada parou de rascunhar contas no papel. Não escuto mais as vozes se chamando entre os equívocos amigos da surdez. Aquietaram-se as dores, as fomes e os cochilos no sofá.
Um dia, chegou alguém varrendo os papéis amassados dos caramelos e limpou as migalhas do chão. Saciou a sede das plantas, bateu a porta e levou os passos até o elevador. Novamente o silêncio fez eco nas fotografias penduradas nas paredes. Um frio me correu por dentro. Sinto falta do barulho da casa e das gentes. Para onde todos foram? Quem vai tirar o pó amotinado pelos cantos? Quem vai abrir as janelas para o senhor de cabelos brancos poder se permitir olhar a rua andar?
Os cheiros também se foram. A cebola e o alho não ardem mais nas panelas. O bolo de baunilha não foi para o forno, nem a massa do pão. O perfume frutado da senhora espevitada não saiu mais do frasco de vidro fosco sobre a penteadeira do quarto - vidro fosco pode ser tanta coisa, até a imagem captada de um pulmão adoecido ou a lente que esconde um olhar extraviado. A senhora espevitada também não saiu mais, tão pouco voltou esbaforida, cheia de sacolas penduradas pelos braços.
Hoje é dia de ventania. Fazia tempo que elas não apareciam por aqui. Chegaram juntas. Fecharam a porta e pausaram na entrada da casa. Deixaram desaguar a dor guardada pelas gavetas. Um suspiro, outro e mais um. Fazer o tempo andar para frente. É preciso atravessar a ponte e esmiuçar o conhecido e, quem sabe, descobrir nuances desapercebidas no corriqueiro dos dias.
Abriram portas, olharam para dentro dos armários, separaram louças, vasos e talheres. Acarinharam os lençóis e as almofadas. Sacudiram as toalhas e dobraram os guardanapos. Miraram os espelhos empoeirados buscando o reflexo daqueles que esvaziaram a casa de toda graça que palpitava pelos cômodos, agora tão esmorecidos.
Acompanhando a lentidão dos movimentos, a noite foi se chegando tímida pela janela. Só então lembraram de mim. Se aproximaram, até que um braço se esticou e me puxou pela perna. Eu me fiz todo em luz sobre elas. Logo me esqueceram, voltaram a vasculhar e separar momentos escondidos nos riscos marcados em cada face e dobra dos objetos tocados pelos dedos vacilantes. Buscavam histórias atrás de um tempo nunca perdido, sempre guardado como flor deixada com cuidado entre as páginas de um livro.
E foi bem antes do arrastar da noite que se foram. Deixaram a desordem costumeira dos apressados diante dos olhares impassíveis dos retratos. Sem piedade cessaram minha participação em toda a intimidade do momento. A casa anoiteceu e eu fiquei novamente só.


 

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