Mari e Lúcia

Denise Accurso

Era mais um dia de trabalho pós-pandemia. Embora com todos vacinados, o movimento não havia voltado ao normal. A quebradeira fora generalizada na cidade, muitos negócios fechados, muitos desempregados. Lúcia mesmo tivera que se reinventar, reduzindo despesas, criando novas fontes de renda. Conversara com as demais profissionais do salão e todos colaboraram. Era uma luta constante equilibrar as contas. Às vezes, como nesse momento, era difícil não sentir desânimo.
– Bom dia!
Quando levanta os olhos da tela do computador, não pode deixar de se deslumbrar: está diante dela uma negra belíssima, com pele cor de caramelo e um sorriso deslumbrante.
– Queria um horário pra fazer a mão.
– Pode ser agora. Estou livre por enquanto.
Acomodam-se e Lúcia inicia o trabalho.
– Tu moras ou trabalhas por aqui? Pergunta Lúcia à desconhecida.
– Um pouco dos dois.
Lúcia levanta os olhos e tem uma iluminação:
– Tu és a namorada do Guto!
É mais uma exclamação que uma pergunta. Guto tem uma modesta lancheria no bairro e todos comentam que ele tinha arrumado uma namorada de parar o trânsito.
– Sou eu mesma – diz a moça, sorrindo – Meu nome é Marivone. Mas prefiro que me chamem de Mari.
– Todo mundo está comentando que o Guto arrumou uma namorada linda…
– Obrigada!
– … e que ele já te botou pra trabalhar. Olha lá, cuidado com ele! Aquilo pra botar os outros pra trabalhar, é com ele!
Mari ri.
– Pelo Guto sou capaz de limpar o chão com a língua.
Lúcia não consegue evitar uma cara de espanto. Guto é tido pelos ex-empregados como explorador, tirando o couro de quem trabalha com ele e pagando mal. Seu pai, de quem herdara a lancheria, tinha o mesmo estilo de administrar o negócio. “Talvez com essa moça tenha sido diferente porque estava de olho nela”, pensou.
Mari percebeu a expressão de Lúcia.
– Olha, ele foi maravilhoso com a minha mãe e depois comigo. Meu filho o adora também.
Lúcia levanta rapidamente os olhos da mão da moça, com uma pergunta no olhar.
– Minha mãe trabalhou ali com ele por uns dois meses, até que pelou Covid. Quando ela arrumou o emprego, agradeci tanto a Deus! Eu estava grávida, sem condição de me empregar. E o pai do meu filho, bem…
Mari contou uma história já tantas vezes contada por mulheres, em muitos idiomas, em todas as épocas. O pai, que dizia que ela era o amor da sua vida, desaparecera sem deixar rastro ao saber de sua gravidez.
Lúcia ouvia, compenetrada, até que se lembrou:
– Tu és filha da Ivone?
– Sou. A mãe conta que vocês pintaram o cabelo dela pra ela poder começar a trabalhar. E deixaram ela pagar depois.
– Eu lembro.
– Pois é. Apesar de todos os cuidados, a mãe lidava com muita gente e terminou pegando o vírus. Foi quando eu conheci o Guto. Ele nos amparou naquele momento. A mãe não tinha carteira assinada, mas o Guto mandava uma cesta básica, ligava pra ver se ela precisava de alguma coisa. Só que eu tinha raiva dele.
Lúcia lança outro olhar interrogativo.
– Eu achava que se a mãe não tivesse arrumado aquele emprego, não teria adoecido. Parecia que ele era o culpado.
– Mas não é assim, essas coisas acontecem…
– Eu sei. A mãe terminou não aguentando. Ele ajudou com o enterro e tudo, mas eu tinha raiva dele. E ele toda hora aparecia lá em casa, brincava com o Vítor. Vítor é o meu filho. Sei lá, ele era tão legal, terminei gostando dele, sabe? E o mais importante é que meu filho tem paixão por ele. Acho que gosta mais dele que de mim!
As duas riem
– Enfim, a coisa foi acontecendo, nem sei explicar. Agora vim pra cá, morar com ele, ajudar na lancheria. No fim, sabe? Acho que tudo acontece por uma razão. A gente é que não compreende.
Com as unhas prontas, Mari sacode as mãos, tentando acelerar a secagem.
– Obrigada, Lúcia. Já me deixa marcado semana que vem, esse horário. Largo o Vítor na escola e venho direto.
– Claro!
A nova cliente vai embora. O humor e o ânimo de Lúcia melhoraram muito, ela mesma não sabe dizer por quê. Será verdade o que disse Mari? Será que tudo acontece por uma razão?
Encolhe os ombros:
– Bora trabalhar! Diz para o salão vazio.

 

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