O filho eterno e seus prêmios literários

Marcelo Spalding

Muitos escritores invejariam o sucesso de Cristovão Tezza com seu O filho eterno (Record, 2007, 224 págs.), que faz questão de se anunciar na capa da nona edição (nona!), publicada em 2010, como vencedor dos prêmios Zaffari & Bourbon 2009, Portugal Telecom 2008, São Paulo de Literatura 2008, Jabuti 2008, Bravo! 2008 e APCA 2007. E o invejaria não apenas pelos prêmios, como também pela crítica, orgulhosamente representada na contracapa da edição, e principalmente porque a obra tem sido indicada em vestibulares de diversos lugares do país (e isso vende muito mais que qualquer troféu na estante ou tapinha nas costas dos críticos).

Sim, muitos escritores invejariam o sucesso de Cristovão Tezza, menos o pai de Felipe. O pai de Felipe é o protagonista de O filho eterno, um escritor que quando tem o filho, na faixa dos 30 anos, acumula cartas de rejeição das editoras e fracassos nos prêmios literários. Mas não parece, o pai de Felipe, ser movido pela vaidade dos troféus, e sim por uma incrível necessidade de escrever: ele escreve, reflete, constrói uma obra anônima, sem leitores, até que, finalmente, seu primeiro livro, Trapo, é publicado por uma grande editora. Daí para as carreiras literária e acadêmica é um pulo.

Não há de ser coincidência que Trapo seja também o primeiro sucesso de Tezza, o autor, e que sua profissão seja dar aulas de linguística numa Universidade Federal, como o protagonista do premiado romance. Evidentemente, ficamos com vontade de saber se as questões pessoais levantadas no livro são ficcionais ou depoimentos corajosos e verdadeiros do autor. Só que nada disso importa e muito menos justifica a quantidade de prêmios recebidos. É preciso ver em O filho eterno um exemplo bem acabado de romance confessional, tão ao gosto do público voyeur contemporâneo, tecnicamente construído de acordo com as normas canônicas e acadêmicas.

A história inicia quando o pai de Felipe, um jovem de 28 anos, leva sua esposa para o hospital em trabalho de parto. É o primeiro filho do casal, e a ansiedade é grande. Desde o princípio, as ações encadeadas a partir do nascimento do bebê são também pretexto para reflexões e devaneios intelectuais do protagonista, fuma e anda de um lado para o outro enquanto o filho não nasce, e que vive às custas da mulher enquanto seu talento não é reconhecido.

"Um homem do sistema. Família é sistema. Daqui a cinquenta anos, ele imagina, sem de fato acreditar na fantasia que põe no corpo, não haverá mais famílias, e o mundo será melhor. Por enquanto, vamos levando com as armas que temos, a entonação já levemente irônica."

O filho, Felipe, finalmente nasce, os parentes são avisados e o narrador vai nos revelando um protagonista não apenas irônico, mas ácido, mordaz. "Um primeiro filho é uma aporrinhação monumental na vida de qualquer casal", dirá adiante. Mas qual não é nossa surpresa quando esse rapaz irônico, ácido, mordaz e sem rumo definido na vida, esse escritor à margem do sistema, esse pai jovem e despreparado descobre que seu filho não é uma criança "normal", ele tem Síndrome de Down. Um "mongolóide", nos termos do pai de Felipe.

"Ele conclui todos os dias: essa criança não lhe dará nada em troca. Sequer aquele prazer mesquinho, mas razoável, de mostrá-lo aos outros como um troféu, já antevendo secretas e inauditas qualidades no futuro daquele (que seria um) belo ser. Se eu escrever um livro sobre ele, ou para ele, o pai pensa, ele jamais conseguirá lê-lo."

A partir desse conflito irreparável e desse tom inconfundível, Tezza costura um texto que é ao mesmo tempo sobre o menino e sobre o pai, metonímias de uma sociedade preconceituosa, conservadora e provinciana. Optando pela narrativa nas cenas com o filho e pelo discurso nas cenas em que o pai reflete sobre seu passado e seu novo desafio, o autor consegue ser contundente sem ser panfletário, emotivo sem cair no piegas. A visão cruel do pai para com o filho num primeiro momento repugna o leitor, mas aos poucos vamos percebendo a sinceridade daquele relato, a dificuldade de lidar com um caso desses e de como não seria muito diferente fôssemos nós o pai.

Nesse sentido, a escolha de um narrador em terceira pessoa, e não um narrador protagonista, embora pareça artifício de adolescente escrevendo sobre seu alter ego, nos aproxima do personagem, que ao não ter nome pode ser qualquer um de nós: pais, tios, irmãos, professores ou vizinhos de uma criança com síndrome de Down, com problema motor, cega, surda, albina, feia, anã (os preconceitos são muito mais numerosos do que as deficiências).

É evidente, porém, o protagonismo absoluto do pai de Felipe, pois em raros momentos o narrador se refere à mãe do menino, que permanecerá casada com o pai de Felipe até o fim do livro, mas será referida em uma ou duas oportunidades, assim como a filha mais nova do casal, uma criança "normal" e que não tem praticamente nenhum espaço no romance. O pai é absoluto em suas ideias, intenções, medos, angústias, conquistas, reversões de expectativa, heroísmos, fracassos, referências (há intertextualidade com dezenas de clássicos da literatura universal, como Dostoiévski, Kafka, Sartre, Thomas Mann, Hemingway; clássicos para o pai, jamais serão lidos pelo menino, admirador de animes japoneses e jogos de futebol).

Assim, valendo-se de um mix pós-moderno de referências eruditas e populares, de questões sociais contemporâneas com aspectos históricos, Tezza constrói um livro provocativo para os analistas e assimilável pelo leitor médio, ainda que este ao final reclame da falta de um final (não está acostumado com a literatura pós-moderna, o leitor médio) e até termine xingando o pai, e o autor, por pensar tão mal sobre o filho.

 

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