Sereis fiel até que a morte vos separe

Adriana Maschmann


“Casas são como máscaras. Sob o telhado, por trás das paredes, ninguém é capaz de enxergar além da fachada. Basta um tanto de anos e lá vêm elas, as malditas rachaduras. No começo, simples fissuras. Olhadas de perto, perigosas fendas a comprometer o alicerce. Prenúncio de ruína.”

Valquíria nunca deixava de sorrir ao olhar para a fotografia em cima do aparador da sala. Ocupava um lugar de destaque, entre os dois castiçais de prata, presentes da madrinha. Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza era a frase escrita em dourado no rodapé do porta-retrato. O sorriso deles não deixava dúvidas – estavam mesmo felizes. Eram jovens, impulsivos e apaixonados. O vestido branco dela em contraste com o traje preto de Adam tornava a imagem ainda mais bonita. A foto estava perfeita. Eram o yin e o yang, diziam os familiares e amigos. Feitos um para o outro.

Todos os dias, acordava mais cedo e preparava o café para o marido. Ia para o trabalho já pensando na volta, na hora de matar a saudade e ficarem lado a lado no sofá. Esperava pelo barulho do carro, o giro na maçaneta e o inconfundível cheiro de cigarro invadindo a sala. Era ele em casa. O beijo na testa, a comida na mesa e as novelas. Sentava sobre os joelhos dele e lhe rodeava os braços em torno do pescoço.

Cultuava um erotismo discreto, adorando o marido como a um deus. Depois, o quarto e as camisolas especiais. Gostava de estar bonita para ele. As noites eram mágicas. Cada minuto passado no balcão da loja onde trabalhava, na cozinha ou na pia eram diluídos na cama.

Mas devagar, assim como as sombras avançavam sobre a noite, começaram a surgir pequenas rupturas. Uma coisinha à toa aqui, outra ali e logo uma infinidade de motivos erguia, pouco a pouco, uma muralha entre os dois.

Adam, tão pontual e carinhoso, passou a chegar atrasado para o jantar. Às vezes, nem fome sentia; outras, reclamava da comida. Os pretextos variavam, mas as atitudes eram as mesmas. De mãos dadas com a indiferença, vieram as grosserias.

- Pô, Valquíria, isto é comida que se apresente? Perdi a fome – e logo ia encerrar-se em si mesmo.

Enjoado das novelas, enterrava o rosto no jornal. O sofá, antes compartilhado entre cobertores e carícias, era agora insuportável, dava dor nas costas. Uma porcaria.

E veio mais. Mínimas ocorrências assumiram máximas importâncias. Um grão de pó sobre a estante era suficiente. Não estava dando conta da casa, ele dizia. Onde já se viu atrasar o café? E as minhas camisas, todas amarrotadas? Por acaso sou homem de passar vergonha, assim, desarrumado? Se está difícil de manter as coisas organizadas, então saia deste emprego, ora. Decidido, disparou:

- Olha, Valquíria, assim não é possível. Acho que chegamos ao limite. A casa virou uma bagunça, o café frio e a comida sem sal. Já deu dessa droga toda. Agora chega de brincar de mulherzinha independente. Esta história de trabalhar fora acaba hoje.

Sem discutir, Valquíria deu razão ao marido, passou a se dedicar mais à vida doméstica e esqueceu da própria. Quase não sorria e pouco saía de casa. Os amigos desistiram, a família só trazia problemas e ela julgou ser a solidão uma boa companhia. Ajeitou a vida de forma a bastar-se sozinha. Vez ou outra olhava a foto do casamento, mas as figuras em preto e branco pareciam desconhecidas. Aqueles tempos haviam ficado presos na moldura sobre o aparador.

Adam, por sua vez, trocou os velhos hábitos. Os momentos no sofá com a esposa foram substituídos por garrafas de uísque e charutos. Passou a comprá-los em grande quantidade. Ali, no canto da sala, entre goles e baforadas, matava o tempo e evitava a mulher. Não mais a tocava, os carinhos eram raros e gelados. Ia mais cedo para o quarto ou chegava tarde em casa.

Devagar, como uma torneira pingando, Valquíria foi deixando seus dias escorrerem sobre a pia da cozinha, queimando as lágrimas no fogão. Lavava, limpava e arrumava. Ao cozinhar, afiava com esmero a faca de lâmina colorida, sua preferida. Havia ganhado de sua avó, com quem aprendera a magia das panelas e o manuseio perfeito de objetos afiados. Desenvolvera uma perícia invejável a qualquer açougueiro. O fio daquela faca era especial, cortava bem. Tão diferente, com essas margaridinhas. Imagine, enfeitar a lâmina com flores! Melhor assim, para cortar com delicadeza. Sentia prazer no bailado sinuoso, deslizando sobre a carne, como uma extensão dos dedos, o corte limpo, os bifes impecáveis. Gostava de facas. Sempre gostou.

Na verdade, as facas lhe excitavam e a faziam poderosa. Com elas, podia fatiar, modificar a matéria passiva, transformá-la. Para ela, a faca sempre seria uma arma ou objeto profano e sagrado. Cabia a seu portador fazer a diferença.

A vida transcorria, em sua maior parte, na cozinha. Pela janela em frente à pia, assistia o reboliço dos passarinhos na grande árvore do quintal. Lembrou dela ainda com poucos galhos, recém-plantada, pobre de folhas, sem frutos e percebeu o quanto havia crescido. Exuberante, ostentava as enormes raízes enterradas até as vísceras no solo e as folhas abundantes cobriam sua antiga nudez. À noite, a quietude era a lei.

Assim como o marido, Valquíria também adquiriu novos hábitos. Esperava, após o jantar, pelo momento de lavar os copos de uísque. O cheiro da bebida, do charuto, a última gota, sugada e lambida, davam a ela uma sensação de cumplicidade com o arredio esposo. Às vezes, sobravam os cubos de gelo. Colocava-os na boca e, de olhos fechados, deixava-os derreterem sobre a língua. Nas noites de céu claro, apagava a luz da cozinha e fazia o seu ritual, iluminada apenas pelos raios do luar. Era nessas horas que desfrutava do encantamento secreto, silencioso e impalpável do seu jardim.

Então, numa destas noites prateadas, enquanto se deleitava com as sobras de bebida no fundo do copo, uma brisa gelada entrou pela janela e a fez estremecer. Olhou para fora e viu movimento entre as folhas da árvore. Era uma coruja com olhos impressionantes. O animal olhou para ela e um arrepio correu na pele, os pelos erguidos um a um.

Ali, assim, pousada naquele galho, parecia um avatar da noite. Linda e aterrorizante, cinzenta como houvessem misturado duas partes iguais de preto e de branco. Ambas se olhavam enquanto Valquíria, imersa no mundo crepuscular trazido pela coruja, nada fez senão admirar aquela visagem. Por fim, com um pio estridente, voou e sumiu.

Era tarde, as horas avançavam e o sono deveria ter aparecido, mas os sentidos permaneciam aguçados. Não conseguia dormir. Num ímpeto, foi até o armário e pegou a garrafa. Escolheu o copo e encheu. Outra vez. Mais outra. Sorveu cada gole como a um elixir precioso e sagrado. Riu satisfeita, estalando a língua. No quarto, o marido dormia, roncando alto, espalhado sobre os lençóis. Ela, plena, sonhou que voava com a coruja, sentindo-se indomável como a vida e a morte.

Acordou com o despertador. Era hora do café, mas pela primeira vez não teve pressa. Adam, sonolento ainda, se virava na cama. Como era costume, Valquíria levantou-se e foi para a cozinha. Ao olhar para a árvore, lembrou da visão da noite anterior. Na mesma hora, sentiu-se diferente, estranhou-se. Algo havia mudado. Ainda não entendia, apenas sentia. Ou pressentia.

- Hoje não venho jantar, Valquíria. Tenho compromissos com o pessoal do escritório e vou chegar tarde.

"Sei". Apenas acenou com a cabeça quando recebeu o diário beijo na testa, único prêmio de consolação dos últimos tempos.

Sem dizer uma palavra, recolheu a mesa com o café e começou as funções da casa. Solitária, passava os dias no sono da vida, como se estivesse morta, esquecida de que tudo é instável e transitório. Antes, chorava; agora, não mais. A estiagem chegara dentro dela e as lágrimas desapareceram com a seca.

Como sempre, a pia esperava. Olhou com raiva. Ódio talvez. Fúria, com certeza. E começou a pensar, imersa e dormente naquela porcaria de existência.
Abre. Fecha. Esfrega. Ensaboa. Enxágua. Quanto tempo dura a limpeza de uma louça? Há quanto tempo lavo louça? Se calculasse as horas semanais em torno desta maldita pia, quantos minutos diários seriam perdidos? No mínimo, três mil e seiscentos segundos por dia, vezes sete dias por semana, vezes trinta dias por mês, vezes trezentos e sessenta e cinco dias por ano, vezes todos os dez anos desta droga de casamento.

Espantada com sua reação, assustou-se. Nem parecia ela. Estaria enlouquecendo? Decidiu não pensar mais naquilo. Era assim agora, nem daria mais tempo de querer mudar nada. E seguiu na limpeza da casa como uma forma de acelerar o dia. Havia descoberto a fórmula de anestesiar-se, arrumando e organizando tudo num frenesi compulsivo. Não se dava descanso. Assim, enganando a vida, o tempo passava arrastando a rotina.

Naquela noite, jantou sozinha. Ao levar os pratos à pia, olhou pela janela e procurou a coruja, mas não a viu. Esperou em vão por intermináveis minutos. Sem copos, sem companhia, sem nada. Restou a cama fria e a insônia. Era tarde quando o marido chegou, fedendo a suor, sêmen e bebida. Encolhida no seu canto, fingiu que dormia.

Seguindo a rotina dos dias, na noite seguinte, ouviu o barulho do carro, aqueceu o jantar, recebeu o beijo na testa e arrumou a mesa. Jantaram como faziam ultimamente, calados. As palavras lhes faltavam, não havia o que dizer e, mais uma vez, a televisão acabou conversando pelos dois.

Ante uma agitação desconhecida, Valquíria tinha pressa em ir para a cozinha, pois na noite anterior a coruja não havia aparecido. Uma urgência sacudia a sua alma e ela precisava chegar até a janela, ansiosa pela visita noturna. Queria vê-la outra vez, entregar-se à embriaguez, ao abandono, ao arrepio vital e arrebatador trazido por aquela criatura.

Acendeu a luz e não viu nada. Lavou a louça esfregando a sujeira com tédio e decepção. Demorou-se um pouco ensaboando a faca estampada, sua preferida. Enxaguou-a e guardou no estojo. Esta era especial, o cabo encaixava, preciso, na curva da mão. Perfeita.

Apagou as luzes e, sentindo um fio gelado atrás do pescoço, olhou pela janela. Lá estava ela, imóvel e de olhar fixo nos seus, evocando a luz naquela imensidade tenebrosa. Aqueles olhos faiscantes reviravam as entranhas de Valquíria, alteravam o seu fluxo sanguíneo e aceleravam as batidas do seu coração. Pulsava, latejava. Maravilhada, sentia-se viva, enfeitiçada, entregue ao transe daquela novidade, prestes a conduzir sua alma boêmia e fantasiosa ao sabor da aventura.

No céu, a lua, dona dos ritmos da vida, brilhava, encarnando o próprio tempo vivo. Ela estava viva. Esperou o marido sair da sala e pegou a garrafa. Não teve receio de que ele a visse. Cheia de uma coragem há muito esquecida, serviu o copo e brindou à rainha do céu, certa de que as divindades lunares compreendiam os deuses da embriaguez, protegendo-os com as bênçãos do esquecimento. Voando sob o manto da noite, a coruja desapareceu.

Radiante, teve a certeza de iniciar, a partir de agora, a reconciliação consigo mesma.

No quarto, olhando para o marido, ouviu um rumor de asas e teve desejos. Vestiu a camisola especial e deitou-se ao lado dele. Aproximou o corpo, cheirou seus cabelos, mas não teve coragem de acordá-lo. Mais uma vez, a distância entre os dois esmagou as suas vontades.

Como era sempre, o relógio despertou, Adam acordou, pediu café e levantou-se. Ainda na cama, Valquíria sorriu para o marido, o olhar cheio de promessas. Puxou a colcha de lado para que ele visse a camisola, deixando as pernas à mostra. Ele sequer virou a cabeça. Invisível e frustrada, saiu do quarto.

Os dias foram passando e as visitas noturnas da coruja transformavam o espírito de Valquíria mais e mais. O cotidiano era agora marcado por pequenas ousadias. Deixava a louça sobre a pia, ouvia música, saía de casa, dançava na sala.

Quando Adam ia para o trabalho, Valquíria saía também. Ardia nela a vontade de respirar, andar à toa por aí. Sentia-se revigorada, disposta e bonita. Tinha a sensação de ser como aquela ave, com o dom de transitar por onde quisesse, desprender voo com total liberdade. Era soberana naquele domínio misterioso do duplo. À noite, aguardava impaciente a visita da coruja e a ela rogava que mudasse a sua vida. Queria ser livre. E suplicou, com todas as forças, à guardiã das moradas obscuras da terra.

Estava viçosa, insistia em atrair a atenção do marido que a ignorava. Notou as frequentes poluções noturnas e o sono agitado, embora ele não a buscasse mais. Foi quando os pesadelos iniciaram.

Neles, era uma linda donzela a vagar pela noite, seduzindo homens, fazendo mal a mulheres grávidas, mães e neonatos. Matava folhagens, bebia sangue e deixava, por onde passasse, um rastro de destruição e morte. Carregava uma multidão de pecados em suas asas e em seus longos cabelos. Não se prostituía, mas tentava os homens, motivada por uma insolente carnalidade.

Valquíria acordava molhada, misto de excitação e medo. Ao mesmo tempo, os sonhos maus a assombravam e despertavam desejos até então desconhecidos. Gostava de sentir-se uma divindade, rasgando as trevas e encorajando-se aos estímulos mais obscuros.

Seus dias haviam se tornado melhores desde o aparecimento da coruja. Ela agora usava o tempo disponível saindo às ruas e flertando com todos. Saboreava cada olhar desejoso de homes e mulheres, entrava em bares e deixava que lhe tocassem. Excitava-os e ia embora. O prazer era maior na sedução do que no ato. Contentava-se com isso, pois, apesar dos novos apetites, havia feito os votos de fidelidade no dia do seu casamento. Seria fiel ao santo matrimônio.

Enquanto ela exalava poder e lascívia, Adam dormia, roncando alto. Virou costume. Conhecia o exato momento em que ele se dirigia ao banheiro e depois, pronto. Desabado, mole e murcho sobre a cama.

Naquela noite, após o jantar, Valquíria foi às pressas para a cozinha esperar a sinistra visitante. Agitada, olhava para a escuridão e nada via. O ar parado, abafado e quente prenunciava uma tempestade. De vez em quando, o lume de um raio partia o céu em veias azuis.

Mas ela não apareceu. Os galhos da árvore, mergulhados no breu, não mostravam o menor vestígio da coruja. Sentiu um calafrio ao perceber que era observada, como se a escuridão da noite tivesse mil olhos a lhe vigiar. Experimentava uma inquietação, um cheiro desconhecido, adocicado e quente. Inflava as narinas, aguçava os instintos, salivava.

Ouvidos atentos, percebeu um ruflar de asas no interior da casa. Olhou a cadeira do marido. Vazia. Chamou e nada. O som, cada vez mais alto, vinha do quarto, sem dúvida. Avançava aos poucos, suando frio e pressagiando algo assustador. Tremendo, parou, assombrada, na porta e, incrédula, viu o inimaginável.

Uma luz intensa e ofuscante revelou uma criatura extraordinária montada sobre seu marido. Os longos cabelos, o tronco desnudo, a boca escancarada, num riso histérico, aos guinchos, emanavam escárnio e luxúria. As asas exuberantes envolviam tudo à volta. Em movimentos ondulantes, se contorcia como uma serpente, enroscando a cauda no corpo de Adam. O olhar fulminante e tétrico a encarava num desafio macabro. Pareciam abrir, ao mesmo tempo, as portas do céu e do inferno. Era como mergulhar nas profundezas do caos. Ele, refém, cativo, hipnótico. Horror e fascínio se misturavam.

Diante da cena, o pavor acelerou seu coração e o fez querer fugir do peito, rasgando-o. Sangrava de dor. Transtornada, foi até a cozinha, pegou a faca estampada e voltou ao quarto, seu purgatório. Em pânico e guiada pelos mais sombrios impulsos, se pôs a golpear a horripilante aparição. A cada investida, as margaridas pintadas na lâmina iam assumindo novas cores. Antes, brancas; agora, vermelhas. E o silêncio.

Nos lençóis, a mancha púrpura excedia os contornos do corpo, pingando sobre o assoalho. Num sobressalto, a janela se abriu trazendo com a brisa uma pluma cinzenta.

 

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