Pesadelos

Denise Accurso

Sonhara de novo com ele. Sonhos angustiantes, desesperadores. Acordou cansada, triste. Estava preocupadíssima.
Fez café pra ela e para o filho, tudo mecanicamente. Deixou o menino na escola como sempre, seguiu para o trabalho como todo dia. Os pensamentos negros, contudo, não a estavam deixando em paz.
Fazia muito tempo que não tinha notícias dele e era melhor assim. O filho, claro, sentia uma certa falta do pai, no começo perguntava por ele. Mas no último sábado a tinha abraçado e dito: “como é bom a gente poder ficar sem sentir medo!”, antes de sair correndo para a quadra do condomínio para jogar bola com os amigos.
O filho era fisicamente igual ao pai, mas completamente diferente na personalidade. Tinha um jeitinho meigo, delicado, que fazia o machismo do Gustavo ferver. Sempre que ela tentava defender a criança, ele vociferava: “tu estás transformando meu filho num veadinho!”
Questionava-se e, pior, culpava-se por ter escolhido esse homem para pai de seu filho. Desculpava-se lembrando que, no começo, ele não era assim, ou tinha escondido muito bem essa faceta de sua personalidade. Na verdade, tudo tinha começado durante a gravidez. Ela queria ser mãe, mas teria preferido esperar mais uns anos. Ele, contudo, insistira, rogara, suplicara. Queria tanto ser pai! Argumentava que o bom era terem o filho cedo, enquanto tinham energia suficiente para acompanhar a criança.
Tantos foram os apelos, que ela cedeu. Já que pretendia mesmo ser mãe, concordou em antecipar esse projeto. Deixou de tomar a pílula e logo engravidou. Quando veio a confirmação, ele ficou felicíssimo, contou para a toda a família, parecia encantado com a paternidade próxima. Não foi uma gestação tranquila, ela teve problemas que exigiram repouso nas últimas semanas. Foi aí que começou a notar uma mudança. Ele tornou-se irritadiço e raivoso, a tal ponto que ela evitava pedir-lhe coisas e deixava de seguir as ordens médicas, fazendo ela mesma sua comida e não observando o repouso como deveria. Por sorte, o pequeno Pedro nasceu perfeito. O bom humor e a alegria de Gustavo, contudo, não voltaram. Reclamava da falta de sexo, do corpo diferente dela, de sua indisponibilidade para quase tudo. Ela tentava, se esforçava, punha a criança para dormir e vinha para o lado dele. Ele reclamava assim mesmo.
A criança foi crescendo e com ela o desagrado, as críticas, o mau humor do pai, que se voltavam ora para a mãe, ora para o filho. Estranhamente, ela foi se acostumando a essa não-felicidade doméstica. Talvez levasse a situação indefinidamente se a violência tivesse se mantido apenas nas palavras.
A primeira agressão física foi com o filho. Um tapa na cara que deixou a impressão da mão pesada por dias. A partir dali, as palavras escassearam e tapas e socos proliferaram. Aquilo a fez tomar uma atitude. Não era possível permanecer naquela situação.
Foi uma separação difícil, litigiosa, cheia de acusações e amargura. Às vezes duvidava dela mesma, será que não passava de uma fase, possível de ser superada? O filho precisava do pai, talvez tivesse se precipitado, talvez houvesse outros recursos, uma terapia, um tratamento para o excesso de agressividade de Gustavo. Lembrava dos bons tempos, dos momentos felizes. Teve a lucidez de perceber que a maioria desses bons momentos fora antes de sua gravidez. Não, não estava errada nem tinha se precipitado. O filho não precisava de um pai abusivo. Nenhum filho precisava daquilo.
Fazia dois anos que tinham se separado e um ano que estavam em paz. No primeiro ano, houve várias investidas de Gustavo. No começo, parecia querer reconquistá-la, chegava calmo, todo romântico, mas a rejeição revelava o agressor amordaçado. Tentara colocar o filho contra ela, mas não fora bem-sucedido, pois não conseguia manter a cordialidade por muito tempo, nem com o próprio filho. Houve cenas, polícia envolvida, dramas, portas arrebentadas a pontapés e muitas lágrimas. Até que parou. Gustavo parou de ligar, de aparecer, deixou de procurá-los.
Ela tampouco o procurou. Embora lamentasse pelo filho, preferia assim. Aos poucos não pensava mais nele, se não fosse o sonho não estaria revivendo esses momentos tão difíceis de sua vida. Aquele sonho a angustiara. Era como uma mensagem, dizendo que ele ainda podia voltar à vida deles.
Depois de acomodar o Pedro para dormir, sentiu-se sem coragem de fazer o mesmo. Temia sonhar novamente. Ligou a TV. De madrugada, adormeceu e sonhou de novo com ele. Acordou em prantos.
No dia seguinte estava esgotada. Mais uma vez, cumpriu a rotina como um autômato. Pensava incessantemente em Gustavo. O filho chegou a perguntar-lhe se estava doente.
– Tá tudo bem, Pedrinho. A mãe dormiu mal, só isso.
Naquela noite optou por tomar um remédio pra dormir. O remédio fez efeito, mas não impediu que Gustavo, pela terceira noite consecutiva, viesse persegui-la.
Na manhã seguinte não acordou em prantos, mas sim furiosa. Aquele cara não ia deixá-la nunca em paz? Precisava fazer alguma coisa, não sabia o quê.
Ao chegar ao trabalho, resolveu ligar para a madrinha do filho, que tinha um parentesco com seu ex-marido. Era prima de segundo ou terceiro grau, achava. Iria implorar segredo e perguntar se sabia alguma coisa dele. Na primeira tentativa deu ocupado, mas na segunda conseguiu.
– Alô? É a Ana?
– Sim, eu mesma. Quem fala?
– Oi, Ana, há quanto tempo! Sou eu, a Paula, mãe do Pedrinho.
– Paula! Sua sumida! Que bom falar contigo! E o meu afilhado, como está? Deve estar enorme.
– Está bem, sim, Paula. Desculpa o sumiço, mas acho que tu entende um pouco… Tu sabe como foi horrível minha separação. Preferi me afastar de todas as ligações antigas.
– Claro, eu entendo… Tu deves estar ligando por causa do que aconteceu, não é? Parece mentira, acabaram de me ligar pra noticiar o falecimento.
Paula titubeou por um instante:
– Como assim, Ana? Do que tu estás falando?
– Do acidente com teu ex, claro! Depois de três dias em coma, não aguentou. Acabei de receber a ligação, um segundo antes da tua, falando que ele morreu! Tu deves querer saber do enterro, né?

 

voltar para página do autor