Fabiana

Denise Accurso

Eu era uma pessoa simples. uma pessoa naturalmente satisfeita. Nunca precisei de muita coisa. Nunca fui exigente. Tentei sempre ser discreta, passar despercebida. Aliás, desde pequena. Minha mãe sempre dizia: “a Fabiana nunca incomodou, nunca deu trabalho”. Minhas irmãs abusavam disso: “deixa esse pior pra Fabiana, pra ela tudo sempre está bom mesmo!” Eu ria. Era verdade.
Assim foi. Cresci. Namorei. Casei. Não é isso que todo mundo faz? Meu marido não me incomodava, nem eu a ele. Antes, terminei o segundo grau e comecei a trabalhar no crediário de um grande magazine. Ganhei várias vezes como funcionária do mês. Foi nesse emprego que conheci meu marido, que na época era vendedor.
Casamos e tivemos dois filhos. Ele continuou a estudar, formou-se em Direito, arrumou emprego melhor. Eu continuei ali, no crediário. Era feliz, eu acho. Com certeza, infeliz eu não era. Os filhos davam um pouco de trabalho, mas nossas mães ajudavam bastante. Compramos casa própria. Domingo fazíamos churrascos para a família e os amigos. Ia tudo bem assim.
O que será que me aconteceu? Essa pessoa, aqui, agora, não sou eu. É uma Fabiana desconhecida, uma Fabiana que simplesmente não consegue parar. Desde que atendi o Álvaro.
Eu não o descreveria como bonito. Meu marido é bem mais bonito que ele. Tampouco ele é mais rico ou mais inteligente, acho até que ele é meio burro, comete erros de português quando fala, as finanças dele não vão bem. O que foi, então?
Foi o olho. Não, o olho não, foi o olhar. Como se me visse inteira, me devassasse, descobrisse segredos que nem eu sabia a meu respeito. Minhas mãos tremiam enquanto o atendia. Ele percebeu.
– O que foi, moça? Tá nervosa? É nova no emprego?
– N… não, pelo contrário, sou a mais antiga aqui.
– Mas então começou a trabalhar ainda no berçário! E me lançou um sorriso galanteador
Meu Deus, havia séculos que ninguém me dirigia um gracejo, simplesmente desconsiderei se era ou não inapropriado. Senti o rubor tomar conta do meu rosto.
Fiz por ele tudo que podia. Tirei juros que não deveria tirar, concedi prazos que não poderia conceder. Finalmente, não havia mais nada a fazer e ele ia embora. Eu não podia permitir aquilo.
– Seu Álvaro!
Ele, que já ia levantando, sentou de novo, sorrindo:
– Que história é essa de Seu Álvaro? Agora somos amigos!
Eu gaguejei, ruborizada:
– O senhor… você… será… eu podia…
Respirei fundo e falei:
– Não quer tomar um cafezinho comigo?
O sorriso continuava ali, mas percebi um certo espanto no olhar dele. Antes que ele respondesse, me apressei a completar:
– Só um cafezinho rápido. Tenho quinze minutos de intervalo. Eu que convidei, eu pago.
Ele aceitou. Eu percebia que estava meio espantado com aquilo. Pra ser sincera, eu também. Nunca tinha feito nada parecido. Nunca tinha fruído meu intervalo da tarde, nunca convidara alguém para um cafezinho…
Fomos. Ele me beijou. Não foi o melhor beijo do mundo, não ouvi sinos, o mundo não parou de girar, nada assim. Ele tinha gosto de cigarro na boca. Foi um beijo real, bom. Um beijo que eu queria.
E aí começou minha insanidade e minha total despersonalização. Não sou mais a Fabiana, boa filha, irmã boazinha, esposa modelo, mãe dedicada, funcionária do mês. Sou um poço profundo de ânsia. Quando estávamos longe, queria apenas fundir-me com o Álvaro. Quando estávamos juntos, sentia que pela primeira vez alguém estava comigo de verdade. Ele me via. Ele me entendia. Ele me conhecia sem me conhecer.
Então, minha vida se resumia a esperar para estar com ele. E todo o resto me parecia apenas uma atrapalhação, um obstáculo a essa finalidade. E estar com ele não era simples, precisava fazer esforços mirabolantes arranjando desculpas.
Comecei a perceber, por alguns olhares, que meu marido estava notando minha mudança. Pra ser sincera, não tentei disfarçar, mas também não virei a mesa, procurava agir como sempre.
– Fabiana, hoje minha mãe estava aqui em casa olhando as crianças e ligou para o escritório, dizendo que vieram cortar a luz. Tive que sair e pagar com multa. Liguei pra ti pra ver se tinhas ou não feito o pagamento, teu celular estava desligado, no trabalho disseram que tu estavas no cafezinho. O que aconteceu?
Dei de ombros. Tinha ajudado o Álvaro a pagar umas contas. Ainda gastei com motel, depilação, lingerie. Meu dinheiro simplesmente sumia.
– Esqueci de te falar. Fiquei sem dinheiro.
Ele me olhava assombrado.
– Como assim?
– Como assim como? Já disse, fiquei sem dinheiro, esqueci de te falar, só isso.
No trabalho, comecei a tirar horas do banco de horas. O tempo com o Álvaro nunca era o suficiente. Enquanto estava com ele, parecia que eu não aproveitava. Muitas vezes percebia que nem mesmo ele entendia o que se passava comigo. Dizia a ele que queria largar tudo e ficar com ele. Ele me lançava olhares incrédulos.
– Tua casa confortável, marido endinheirado, teus filhos? Tu ia ter coragem de largar tudo isso por mim?
Eu me desesperava. Queria que ele acreditasse em mim.
– Tu queres eu me mudo hoje mesmo!
– Tu só estás dizendo isso porque não conhece a minha casa. Tu sabes que estou numa situação difícil. O mercado de trabalho está horrível. Não tive dinheiro pra abastecer, vim aqui te ver de ônibus, e precisei pedir o o dinheiro da passagem emprestado!
O coração dela se apertava. Tirou todo o dinheiro que tinha e enfiou no bolso dele. O olhar que ele lhe lançou era de gratidão.
– Tu sabes que logo vou poder te pagar, não é, minha linda?
Ela tentava ajudar de todas as formas. Ele se queixava que não tinha condições de assumir um relacionamento naquela situação em que estava, mas que, quando as coisas melhorassem, tudo seria diferente.
Um dia apareceu sem avisar na loja. Parecia extremamente triste. Ela logo fechou seu guichê e foi conversar com ele.
– Olha, minha linda, vim te dizer pessoalmente que não vamos mais nos ver. Tu não merece arriscar teu casamento por minha causa. Sou um caso perdido. Estou tentando vender o carro, mas é um carro velho, ninguém se interessa. Não sei mais o que fazer.
Abriu o jogo. Ia embora, voltar para o interior, buscar ajuda da família.
Agoniada, peguei as mãos dele.
– Eu compro o carro.
Fiz um empréstimo e comprei o carro, que continuou com ele. O dinheiro ainda deu pra fazer uns reparos.
Aquilo nos aproximou. Tudo ia bem, mas, uma semana depois, fui despedida. Eu, despedida, depois de toda uma vida dedicada à empresa!
Quando meu marido soube, explodiu. Veio pra cima de mim, dizendo que já não me conhecia mais, que eu negligenciava tudo, não cuidava dos filhos… O que eu podia responder? Era tudo verdade.
Enquanto ele esbravejava, eu, tranquilamente, comecei a fazer minha mala. Nem ouvia o que ele dizia. Liguei para o Álvaro. Pedi que ele viesse me buscar. E fui morar com ele.
Sei que foi de surpresa, que ele não esperava, mas que escolha eu tinha? Vi pelos olhares de pura confusão, talvez pela modéstia de sua casa, muito pequena, simples, com móveis antigos e descombinados.
Nos primeiros dias foi maravilhoso. Brinquei de casinha, arrumei muitas coisas, coloquei fora alguns sinais da vida de solteiro do Álvaro, artigos femininos esquecidos na casa. Agora ele era meu companheiro. Passava o dia fora, tentando vender artigos de construção e ao mesmo tempo tentando arranjar emprego fixo. Quando ele chegava, eu o esperava como uma esposa dos anos 50. O Álvaro parecia feliz… mas, às vezes, seu olhar mostrava algo que eu não alcançava. Seria perplexidade? Dúvida? Eu não sabia.
Meu marido ligava, pedia pra eu voltar, ou pelo menos visitar meus filhos. Eu não queria. O que ia dizer a eles? Com o tempo, parei de atender.
Quando meu dinheiro estava no fim, comecei eu, também, a procurar emprego. Não sei bem por quê, mas foi aí que o Álvaro passou a chegar cada vez mais tarde em casa. Eu ainda tentava manter aquela vibe do começo, mas ele estava sempre muito cansado e mal-humorado.
Até a noite em que ele não voltou. Passei essa noite sentada na cadeira baixinha de fórmica – aquela mesa e as cadeiras faziam eu me sentir quase gigante. Vi as estrelas mudarem de lugar e desaparecerem ante a concorrência desleal da luz solar. Até que a chave girou na porta.
Atirei-me em seus braços. Ele me empurrou. Cheirava a álcool e… não sei bem… tinha outro cheiro ali. Cheiro de gente. Cheiro de mulher.
– Que inferno de mulher grudenta! Vê se me esquece!
Não fiquei muito tempo chorando ali no chão, só o suficiente. Logo levantei, lavei o rosto e saí. Fui na vizinha. Ela sempre sabia de tudo, de todas as fofocas.
Contei a ela, chorando, que o Álvaro tinha passado a noite fora. Ela me fez um cafezinho e disse que já tinha visto a “vagabunda da Elaine, que trabalha no salão de beleza da rua de baixo, dando em cima dele”. Contou que antes de eu ir morar com o Álvaro ela não saía da casa. Teria contado mais se eu não tivesse ido até o tal salão dar uma olhada nessa Elaine. Uma loura oxigenada de carnes fartas. Bonita, mas de um jeito vulgar. Aquilo não podia ser.
Mas era. Quando o salão fechou, segui a mulher até a casa dela. Fiquei esperando, escondida do outro lado da rua. Não demorou e o Álvaro apareceu. Ela o recebeu como se recebe o namorado.
Isso eu não podia admitir. Era demais. Eu nunca quis nada nem ninguém antes. Sacrifiquei tudo por essa chama que ardia dentro de mim pela primeira vez. E era essa minha recompensa? Eu, que jamais tive nada, nunca pedi nada, nunca tirei nada de ninguém!
Chorei as lágrimas mais amargas da minha vida. Quando parei de soluçar, me dei conta que estava com a chave reserva do carro. Entrei e manobrei, me afastando do portão. Ali esperei.
Mais uma vez acompanhei aquela mágica transformação do azul em negro cravejado de brilhantes e a posterior invasão do azul. Até consegui ver naquilo uma certa beleza.
A porta abriu. Ela vem até o portão com ele, como eu esperava. Liguei o carro e acelerei ao máximo, jogando-o sobre os dois. O muro baixo caiu, o carro invadiu a casa levando pedaços dos dois.
Nada comparado à minha própria destruição.

 

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