O Diário

Marta Leiria

Quando ouvi aquela sirene tocando e avistei do 3º andar a ambulância, corri para a sacada e vi o movimento de gente de branco chegando com maca e tudo na portaria do prédio. Saí de fininho pela escada de serviço para não me envolver. Pelo jeito, iam levar a vizinha. Eu não queria que me perguntassem o que eu achava daquilo. Não que fossem me perguntar, parece que já tinham decidido. Na verdade, eu não queria abrir a boca, dizer o que eu sabia sobre a vida dela, ou sobre o que eu desconfiava, não sei se me explico bem. Confesso que eu achava um pouco curioso que mesmo depois de dois meses de quarentena, socada sozinha dentro de casa, ela sempre surgia no corredor bem arrumada, impecavelmente penteada – até parecia usar peruca - e maquiada. E, muito estranho, caixas e mais caixas não paravam de chegar no apartamento dela. Ângela até nem é velha, regula comigo de idade, deve ter uns 65, 67 anos. Ela, é bem verdade, tem uma questão séria com o espelho, quer se ver refletida sempre impecável. Eu ouvia o toc-toc-toc do salto alto desfilando pelos corredores. Às vezes, abria a porta e dava um oi, só para ver se ela notava que eu estava ouvindo aquela barulheira toda, desnecessária em dias de prisão domiciliar coletiva. Mas ela sorria sem qualquer traço de hesitação ou mau humor, parecia felicíssima, me cumprimentava e prosseguia o sapateado. Subia e descia as escadas de salto alto e tudo. O porteiro me contou que ela ficava vendo o movimento, admirando de longe os poucos transeuntes que se aventuravam pelas ruas desertas, alguns carros, os motoboys. Com meus botões, ficava imaginando Ângela a observar aquele sol que brilhava sem parar desafiando a realidade funesta da pandemia. O apartamento dela era de fundos, não entrava sequer um raio de sol, vai ver era por isso que ela ficava lá embaixo vendo o cenário ensolarado. Mas uma coisa não fechava: como é que ela estava sempre bronzeada, sem desbotar?

Eu até nem ia escrever sobre aqueles dias estranhos e difíceis, mas já não tinha muito o que fazer além de listas de supermercado e farmácia. Cansei de assistir aos noticiários dando conta dos números de mortes, da falta de previsão do surgimento de vacina, do improvável remédio que salvaria a pátria, dos filmes, das longas e inacabadas séries televisivas e, principalmente, das quinhentas mil lives de todo tipo. Sobre mim mesma não queria contar nada, não queria opinar e espalhar aos quatro ventos opiniões que sequer tinha sobre aquilo tudo. Os dias pareciam iguais e eu preferia guardar as lembranças repetidas e sem qualquer glamour para mim mesma. Mas às vezes o entardecer era colorido e as nuvens apareciam em formatos bem inusitados. E eu apreciava aquelas novidades.

Foi então que resolvi escrever um diário de quarentena. Queria contar da Ângela, a vizinha. Tivera uma vida movimentada. Nas poucas vezes em que nos visitamos, deu para ter um panorama daquelas tantas aventuras que, ao que tudo indicava, tinham chegado ao fim. Eu não queria parecer curiosa e revelar minha vida sem graça. Falava pouco, mas perguntava muito. Nunca tinha ouvido alguém falar daquele jeito sobre si mesma. Ela me contou com toda a franqueza que o maior e melhor investimento que fizera na vida tinha sido em sua própria aparência. Cremes, maquiagem, roupas de grife. Nada de estudos, carreira, casamento. Tivera, graças ao que ela chamou de investimento, muitos casos, homens interessantes, outros nem tanto, admitia. O salão de beleza tivera seu auge em meados de 1990, depois foi diminuindo em todos os aspectos, sobrou pouco espaço e meia dúzia de profissionais, até que teve de fechar as portas. Ela dizia que aprendeu a fazer tudo nela mesma e que no período da quarentena mantinha a rotina de beleza sem sair de casa. Mas eu desconfiava que isso não era toda a verdade.

Naquele edifício, que chatice, todos sabiam sobre a vida de todos. O problema era que eu não me interessava por detalhes da vida alheia. Ainda mais sobre aquelas vidas sem relevância nenhuma. Mas não gostei nenhum pouco quando disseram que eu não podia sair de casa por estar no grupo de risco. No elevador, até bilhetes com recadinhos dos mais jovens se oferecendo para fazer as compras para os mais velhos. Quando eu descia as escadas, o zelador logo ia trancando a porta da rua. Vá lá que eu tenha meus sessenta e tantos, mas não tinha doença nenhuma. Ao menos nenhuma diagnosticada, é bom esclarecer. E uma certa velhice, até onde sei, não é sinônimo de doença. Antes dessa maldita pandemia, tinha uma vida bem ativa. Se bem que nos últimos anos, com a viuvez e a saída dos filhos de casa, a minha rotina tenha entrado em um estado de “tanto faz”. Explico: tanto faz acordar cedo, tanto faz pintar os cabelos, tanto faz trocar os lençóis com frequência. Com chuva ou sem ela, os dias transcorreriam mais ou menos iguais, sem variações dignas de nota. Como não havia ninguém que me obrigasse a fazer coisa alguma, tinha a opção de ficar jogada num canto da casa de chambre e pantufas sem fazer rigorosamente nada o dia inteirinho. Compromissos com hora marcada? Nenhum. Uma caminhada aqui, outra ali. Uma aula de alongamento na academia quando me dava na telha. Já tinha desistido de pintar os cabelos há tempo, o corte eu mesma fazia. Quando, por exemplo, os filhos ligavam, eu podia transportar para a minha realidade os fatos interessantes acontecidos com as personagens dos livros e dos filmes e, desde que não muito improváveis, eles acreditavam que era eu quem tinha ido à exposição de arte, ao cinema no final da tarde, ao café do teatro com as amigas fulana e beltrana. E me deixavam em paz. Que bom, mãe!, diziam entusiasmados.

Isso de não poder sair porta afora, como era do meu costume, estava me deixando ansiosa, para dizer o mínimo. Sem falar no negócio de desinfetar tudo, até sacola de supermercado! Onde já se viu uma maluquice dessas? Nem em filme de terror tinha visto uma vida assim, combinação de clausura com assepsia completa. Logo eu, que não era do tipo fanático por limpeza, como viraria maniática da noite para o dia? Parecia impossível, a não ser que fizesse um transplante de cérebro. Eu tinha uma porção de romances esperando na fila para serem lidos, mas a concentração em narrativas longas estava difícil. Em vez de comprar livros, comecei a me entreter fazendo bolos e mais bolos.

Como eu já disse, a vizinha se arrumava toda e eu desconfiava que ela ia para rua, para o cabelereiro, para o clube. É, pensando bem, parece que o clube estava fechado, mas para algum lugar ela ia tomar sol, isso é certo! Nunca fui um tipo paranoico, mas aquilo parecia um complô. Não era justo. Por isso quis tirar a limpo aquela história: só eu estava trancafiada em casa, ou a vizinha também não punha o nariz para além da portaria?

Ainda bem que quando a máfia branca me pegou de jeito na portaria do prédio, eu, no fundo, no fundo, já desconfiada que o negócio era comigo mesma, Natália, desci correndo pela escada de serviço com meu diário na mão. E pude passar a limpo e entender o que se passou comigo nesse período alucinado de clausura, limpezas e compras e mais compras. Fico me perguntando para mim mesma: será que só eu enlouqueci nesses dias de quarentena?

 

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