Metamorfose

Marta Helena Xavier



A nostalgia invadia as engrenagens do relógio. Bons tempos aqueles; desfilava diariamente pela cidade. Com orgulho emprestava elegância ao caminhar daquele terno de risca e sapatos pretos amarrados com perfeição.
Hoje vive esquecido na cômoda espelhada do quarto. Faz companhia a seu amigo colar, este acostumado ao marasmo dos dias. Até hoje não entende ao certo o que aconteceu. Teria sido culpa sua? Por acaso havia atrasado as horas? Estaria fora de moda?
O relógio tinha saudades do tempo quando Duda acordava todas as manhãs e o colocava no pulso. Passava a ocupar seu lugar no mundo. Perambulava cheio de garbo pelas calçadas, entrava no ônibus pontualmente com seus ponteiros sempre bem ajustados. No escritório não parava, de um lado para outro, no meio de tanto burburinho seu tic-tac se perdia. Só no final do dia retornava à cômoda do quarto.
Quanto ao colar, mesmo com tantas pedras brilhantes, unidas por um fio invisível que o enrolava em curvas, vivia em férias permanentes no tampo da cômoda. Muito raramente a vida lhe presenteava com alguns minutos enfeitando um colo morno em frente ao espelho. Era quando o colar se via pleno em suas curvas bem assentadas no corpo de Duda. Uma alegria fugaz, pois logo era arrancado com força e colocado de volta sobre a frieza do conhecido móvel.
O tempo caminhava assim, sem sobressaltos, nas linhas retas dos ponteiros do relógio e no silêncio das curvas do colar. Mas, numa certa manhã, Duda não encontrou forças para levantar. Ficou na cama, sem ânimo de representar o que se obrigava a ser todo santo dia. Sentia, era chegada a hora de deixar o vento soprar para outros lados. Precisou esperar a noite trazer a coragem escondida nos cantos do dia. Então levantou, tomou um banho e deu início a sua nova jornada. Iria encarar o mundo. Tirou do fundo do armário o vestido preto e reto, até logo acima dos joelhos. Pegou os sapatos vermelhos de salto agulha e as meias rendadas. Colocou tudo em cima da cama no formato do corpo onde se reconhecia.
Relógio e colar chegavam a se bater tentando acompanhar toda esta movimentação. O relógio sentia seus ponteiros travarem. O colar encontrou um fio de esperança unindo suas pedras. E assim o espelho foi revelando um novo rosto: sereno, confiante e sem a barba que sempre o acompanhava. Uma maquiagem delicada: base líquida para uniformizar a pele, pó compacto e blush para o acabamento perfeito. Nos olhos uma sombra em tom pastel. Generosas camadas de rímel nos cílios. Lápis preto contornado o olhar amendoado. Por último o batom vermelho, escancarando as linhas dos lábios carnudos.
Nesse ponto, o colar sentia que faria parte de tudo aquilo. O brilho de suas pedras refletia Duda colocando o vestido, as meias e depois os sapatos; tudo feito numa harmonia delicada de gestos. Foi testemunha quando uma linda peruca ruiva foi tirada da gaveta da cômoda e acomodada no alto daquela cabeça. Linda! Uma borboleta voando livre pela primeira vez.
A tudo o relógio assistia incrédulo. Iniciava ali a perda de seu espaço nos dias ainda por chegar. A certeza veio no momento em que viu seu companheiro colar ser suspenso pelas mãos de Duda e ir balançando no ar, num gracioso balé, dando voltas enquanto era acomodado no colo daquele novo corpo.
Então, a porta bateu. Levou com ela a vida e o colar a tiracolo. O relógio entrava em pausa para o colar brilhar. E ele brilhou intensamente protegido pela noite. Duda e seu colar se lançaram no tão desejado desconhecido. Uma aventura se revelava intensa e mágica, cheia de descobertas. Entorpeceram-se em centenas de goles, estontearam-se enredados em novos cheiros e sabores.
Quando o dia começou a pedir espaço nas frestas da noite, o relógio sentiu o calor das pedras do colar lhe cutucando o metal. E como nos últimos acordes de uma dança, seu companheiro, deslizando devagar, foi se acomodando ao seu lado. E Duda, pura exaustão, se atirou sobre os lençóis da cama. Ouvia ainda o eco do riso de sua felicidade antes de adormecer.



 

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