Quarentena 3

Denise Accurso

Hoje é o 235º dia de quarentena. Marta levanta ainda com muito sono. Tem que preparar o café das crianças. Depois tem que inventar alguma distração até a hora das aulas virtuais.
Estava sendo muito, muito difícil arcar com tudo sozinha. Quando o Júlio ainda estava ali, era mais fácil, mais leve. Agora que ele se fora, era tudo com ela. Às vezes pensava que se soubesse que seria assim, jamais teria tido filhos. Esse pensamento a enchia de culpa, tratou de afastá-lo enquanto escovava os dentes.
Entrou no quarto das crianças, que ainda dormiam. Sacudiu primeiro o Bernardo, que, bocejando, protestou: “ai, mãe, ainda é muito cedo”. Em seguida chamou o pequeno Vítor. Insistiu até que ambos estivessem fora da cama. Separou suas roupas. Fazia questão de não permitir que se passasse o dia todo de pijama. Tentava, por eles, manter uma rotina meio normal.
Enquanto os meninos iam ao banheiro, foi preparar o desjejum. Na cesta da semana passada tinha vindo muitas barras de chocolate. Marta tinha comprado leite pra fazer chocolate quente, que eles adoravam. Tinha comprado pão caseiro também. Preocupava-se com a nutrição dos meninos, principalmente depois do que aconteceu com o Júlio. Planejou dar-lhes, no meio da manhã, bananas para lanche.
Os dois entraram na cozinha, implicando um com o outro. Sentaram à mesa. Vítor perguntou, pela vigésima vez:
– Mãe, quando é que o pai volta?
Marta suspira.
– Filho, já te expliquei, infelizmente o pai não volta mais.
– Vítor, como tu é burro. O pai morreu! Quantas vezes a mãe já te explicou?
Os olhos do pequeno mostram confusão. A mãe volta a explicar:
– O pai ficou muito, muito doente e o papai do céu levou ele, pra ele não sentir dor.
Marta nunca imaginara que, quando Júlio começou a se queixar de dor de garganta, ele estivesse com o vírus. Júlio não teve febre, tosse, nem dor no corpo. Malhou até quase o fim. Entendia a perplexidade do filho menor, ela mesma tinha dificuldade de compreender. No meio da noite, algo a acordara: as costas da mão do marido bateram com força no seu pescoço. Acordou e o viu, vermelho, debatendo-se, lutando para respirar. Imediatamente ligou para o plantão. Estava desesperada e incoerente ao telefone, mas o atendente, hábil em lidar com esse tipo de situação, conseguiu extrair as informações necessárias.
Os paramédicos chegaram em vinte minutos. Júlio já não respirava. Retiraram sangue e constataram:
– É o vírus.
Os removedores de corpos foram chamados e chegaram quase imediatamente. Marta queria saber para onde o levariam.
– Vai ser incinerado, senhora, o mais rapidamente possível.
E assim ele se fora para sempre. Se ela, que vira acontecer, custava a crer, imagina os meninos, que dormiram tranquilamente e no dia seguinte acordaram sem pai!
Ela mal tivera tempo pra sofrer. De repente, vira-se sobrecarregada com o cuidado da casa, dos filhos, administração financeira. Aconteceu o mesmo que a tantas outras pessoas, perdeu o emprego. Não houve qualquer consideração por sua perda recente, eram muitos na mesma situação. Isso parecia embrutecer as pessoas, ninguém ficava com pena de uma viúva com dois filhos pequenos.
Ligou a TV. Apareceu o último Ministro da Saúde, explicando: “a vacinação iniciada não irá parar, segue 24 horas por dia até que cada cidadão esteja imunizado. Todas as normas restritivas de liberdade serão revogadas para cada pessoa após 48 horas da vacina. Com certeza há um ponto de vacinação próximo de você”.
As crianças continuavam a falar no Júlio. Bernardo, com ares de adulto, explicava ao irmão menor que o pai fora removido para que eles não se contaminassem. Marta pede silêncio:
– Deixa eu ouvir a TV, pelo amor de Deus!
A voz que vinha da TV explicava “procure um posto de vacinação imediatamente. Lojas, farmácias, supermercados, em todos os estabelecimentos há pessoas aplicando a vacina. Quanto antes você se vacinar, mais cedo poderá sair e rever seus entes queridos”.
Marta teve uma vertigem, precisou segurar-se à mesa para não cair. Os meninos a olharam, assustados.
Ela vai até a porta e espia pelo olho mágico. Vê passar o casal vizinho, de mãos dadas. Marco e Rosa. Estão magros, cabeludos, felizes. Começa a compreender tudo.
– Meninos, terminem esse café de uma vez e vão botar os sapatos. Nós vamos sair!
Ambos olhavam a mãe, perplexos.
– Mas… mãe… é proibido sair… a gente não pode!
– Pode, sim, filho. Acharam a vacina. Acharam a vacina. Acharam a vacina!!!
E quase sufoca com o próprio riso.
Os meninos, vendo a mãe tão feliz, deixam-se contagiar por aquela alegria. Vão correndo buscar os sapatos, enquanto ela prende o cabelo.
Vitor puxa a blusa da mãe e pergunta:
– Quer dizer que agora o pai vai voltar?

 

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