A Engenheira Convicta

Marta Leiria

A ENGENHEIRA CONVICTA

Glória, moça recém-formada em Engenharia Civil, era louca por números, planejamentos, exatidões em geral. Zombava de poetas, ufólogos, crentes. Nem a religião da família a fisgara. Ainda pequena, enquanto todos iam à missa aos domingos, Glorinha dava sucessivas desculpas para ficar em casa: um tema difícil e inadiável, dores insuportáveis de barriga ou de cabeça, os últimos capítulos do romance de cabeceira do qual não poderia, de jeito nenhum, se desgrudar.

A voz que ouvira já tarde da noite era familiar e dizia Glória, Glória, Glória, num sussurro que mais parecia uma reza, vinda de longe. Sonho estranho. Virou para o outro lado na cama. Como o chamado continuasse, Glória resolveu, a contragosto, se levantar. A voz vinha da praça em frente à casa. Sobre o balanço, vislumbrou uma menina vestida para festa, com duas tranças loiras que brilhavam sob a luz do luar. Nos lábios, um sorriso alegre. Glória não teve coragem de se aproximar, parecia-se demais com Rita, a prima que morrera tragicamente em um acidente de carro no dia em que as duas comemoravam a Primeira Comunhão. Embalava-se com um livro sobre o colo. Glória correu de volta ao seu quarto. Resolveu recorrer a uma daquelas pílulas mágicas, úteis para conciliar o sono em longas noites tentando resolver, sem sucesso, cálculos dificílimos. Triplicou a dose.

O sol já ia alto quando Glória acordou, ainda sentindo nos músculos o torpor provocado pelo sonífero. Ao pegar o chambre, sobre a escrivaninha, em meio a projetos, cálculos e réguas, deparou-se, para seu espanto, com uma Bíblia. Aterrorizada, e já antevendo o pior, abriu-a na página que continha uma linda dedicatória com sua caprichada letra de criança para a amada prima Rita, presente enterrado com ela naquela trágica, longínqua e inesquecível data que tanto planejara, em vão, esquecer. 

Marlene, mãe de Glória, me contou esse episódio há alguns meses, em um encontro dos nossos saudosos tempos de colégio. Foi com profundo pesar que soube da filha da minha amiga. Depois desse fato, Glória largou a recém-iniciada e promissora carreira na Engenharia, e essa vida de exatidões, e saiu a perambular pelo mundo na busca de explicações que talvez nunca venha a encontrar.

 

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