Um dia de sorte

Jacira Fagundes



Um dia de sorte

Jacira Fagundes


No domingo, Nina afastara a mão de João da sua, e voltava àquele “precisamos conversar” que já vinha durando uma semana. João tornou a insistir e segurou com força a mão da namorada. Mas Nina o afastara mais uma vez. João colocou os cotovelos sobre a mesa e se aprontou para ouvir o que vinha evitando por todos aqueles dias.
Foi só Nina abrir a boca e ele a interrompeu.
– Não precisa falar nada.
– Mas eu quero falar, João. É que a gente está junto faz um tempão e...
– Quer terminar, é isso, né? Tá bom, Nina! Acabou!
Levantou aos tropeços da cadeira. Segurou a raiva e olhou em volta da sala. Artur, o irmãozinho de Nina, assistia desenho na TV. João deu um tapinha nas costas de Artur, disse tchau cara, e se mandou porta afora no maior estardalhaço.

No recreio, na segunda-feira, João estava chateado. Afinal, eram quase dois anos de namoro. João e Nina, o par perfeito. A turma B96 torcia por eles. Era um namoro à antiga, de grude mesmo. Ele preferiu caminhar solitário. Dispensou a cantina. Queria ficar distante de todos, até dos íntimos. Bastavam os olhares mais do que invasivos dos colegas, como a lhe exigir explicações. “E aí, cara, tu e a Nina? Qual é?”
Foi então que viu a Nina junto à cancha de futebol. Não estava sozinha. A raiva invadiu sua cabeça. Nina e Anderson! Não dava pra acreditar. Deu vontade de chegar de sola nos dois e lembrar o mau-caratismo do Anderson. Nina não podia ter esquecido.
Por causa da farsa que ele tinha armado, a B96, que era a favorita, tinha perdido o campeonato de futsal no ano anterior. Não satisfeito com o resultado a favor do time dele, o cara ainda provocou a briga. O estádio virou campo de batalha – o jogo interrompido e a partida anulada. Os dois times dando explicações na secretaria. E o tonto do Anderson se fazendo de mocinho quando era ele o bandido. Só a B96 ganhou suspensão. De três dias. O diretor decretou o fim do campeonato no colégio. As duas turmas – a B96 e a B98 – nunca mais se entenderam. Ficou aquela mágoa. Até hoje.
E agora o Anderson, de novo, armava pra ganhar. Só que desta vez a jogada era outra, não era uma medalha. Era a Nina, a parceira, a eterna namoradinha do João.
Ele pensou melhor. Não valia a pena enfrentar os dois. O seu namoro de compromisso havia chegado ao fim. Como o campeonato de futsal.
Mas o “precisamos conversar” da Nina havia ultrapassado o entendimento. Gritava no seu peito, vinha de todos os lados do pátio como um grito de guerra a pedir por desforra. Aturdido, ele deu meia volta. Caminhou até a sala. Correu o zíper da mochila, enfiou a mão no fundo e encontrou o cabo da navalha. Olhou o objeto de um jeito esquisito – nunca fora preciso usar a pequena arma, talvez nem ele soubesse manejar com precisão, caso fosse mesmo necessário. Toda a turma tinha combinado se armar depois que um cara suspeito andou rondando o colégio; era pra defesa, só pra defesa.
Pois João iria usar agora na pele do Anderson. Por vingança. Só por vingança. Dava no mesmo. Não ia abusar da valentia. Só queria ver a reação, se ele desenhasse de verdade um filete de sangue no braço do outro. Lavaria a honra, como os antigos amantes.
Foi para o pátio esperar os dois voltarem da pegação.

João pareceu acordar de um pesadelo ao ouvir a voz da garota às suas costas.
– Até que enfim te encontro sozinho.
Duda, a carioquinha recém-chegada naquele semestre, se materializava a sua frente com o sorriso mais encantador do mundo. Duda, a guria que vinha se revelando a maior saqueadora no vôlei. Duda, a menina mais desejada por todos os garotos da turma, lhe falava macio: “até que enfim te encontro sozinho.”
Ele pensou: “deixa pra lá”. Quando havia apresentado a Nina pro vô, o velho tinha passado a mão nas cabeças dos dois e falado “Estão aprendendo a namorar, nhein crianças?
O avô tinha razão. Ele, João, estava aprendendo a namorar. E, na certa, teria de aprender ainda por muito tempo. Sem dúvida, este era seu dia de sorte.
Com a mão direita empurrou a navalha para o fundo do bolso da calça. Com a esquerda segurou a mão da Duda e convidou-a:
– Vamos pra cantina? Acho que ainda dá tempo pra uma água de coco.

 

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