A busca por ressignificação das palavras em tempos de ódio (Ensaio)

R. Duccini

Para o brasileiro no começo da década de 2010 o amor era importante e sua necessidade massiva era expressa através de expressões como: “mais amor, por favor” e “o amor é importante, porra”. Espalhadas em pichações, lambes, posts na internet, a afirmação à importância do amor ecoava pelas ruas do país. Ecoou ao ponto de levar ao espanto a Poeta Matilde Campilho. Portuguesa, residiu na cidade do Rio de Janeiro durante os anos de 2010 a 2013, em tempos democraticamente estáveis. Na primeira frase da prosa-poética Tiger Balm, nos é alertado: O brasileiro acha que o amor é importante porra. Eu cá, não acho nada, prossegue Campilho. Eu aqui, em 2018, não sei mais o que achar. Há divisões e ruídos nas expressões de afeto. Há quem ache que o amor é importante e precisa se multiplicar com ninguém mais soltando a mão de ninguém. Há quem ache que ódio é verbo imperativo e que a intolerância é lei.
Durante o período eleitoral deste ano vimos acontecer a eleição mais suja, anti-ética, marcada pela desmoralizante atuação do judiciário, e pela violência. De Marielle a Moa; aos agredidos pelo pânico diante do delírio. Seja através dos discursos de ódio ou dos assassinatos e agressões cometidos em caráter político: nunca havia se visto tamanha violência direcionada e anônima. Historicamente, a democracia brasileira é jovem, e precisa descobrir seus processos de amadurecimento. Mas o que vimos em 2018 vai para além de um processo elucidatório, vimos um levante fascista, apoiado e estruturado talvez muito antes de termos sidos capazes de perceber. Houve um avanço da agressão em âmbito simbólico e físico. Predominante de signos fálicos os discursos de certos candidatos se espalhavam feito um vírus disseminado através da mentira, do ódio, penetrando nas rachaduras das próprias falhas de um sistema político e de uma sociedade em múltiplas crises.
Para a escritora e repórter Eliane Brum, a crise do Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra. Quando tudo pode ser dito, nada mais diz. As palavras, no Brasil, se tornaram palavras fantasmas, porque nada movem. Ainda em 2016 ela havia denunciado, após o Golpe, o esvaziamento das palavras. Quando a palavra genocídio, de nós tão conhecida, não dizia mais nada. Esvaziada, era impossibilitada de ações, havia se tornado uma palavra oca, que apenas constata um fato em neutro conformismo. Mas o rosto de uma mãe, banhado em sangue e capturado em imagem, gritava. Dizia o que as palavras já haviam se tornado incapazes de dizer. Hoje, passados dois anos, submersos em narrativas de violência e embebidos em discursos de ódio, estamos vivendo em tempos de “palavras bala-perdida”.
Em looping e sobrecarregados de informações ficamos atônitos ao vermos nossas palavras (e nós mesmos) incapazes de agir. E ainda aturdidos vemos o desfile do absurdo se escancarando a partir do dia 17 de abril de 2016. Dia em que foi votada a abertura do processo de impeachment da até então legítima presidenta Dilma Rousseff. Ação essa que marcou o golpe (e quiçá o significativo levante aberto da extrema direita no Brasil), foi defendida em nome da família, da pátria, de seus si mesmos, de Deus. Em nome de Deus? Sobre esse momento compartilho a visão trazida pela persongem Ulrike, do romance Nas Margens do Azul:

“Em nome de deus? Em nome da estrela da morte, Ustra. Em nome dos torturadores, patas de barata, cabeça-dinossauro. Não somos os homens-ocos, mas estamos aturdidos e em silêncio. Das nossas bocas sai o som seco e incrédulo do espanto. Nossa voz tapada por panelas Tramontina. Em nome de Deus… Em nome dos torturadores, sem a piedade do olhar dos torturados. Em nome dos liquidificadores. Periquitos, crianças e sombrinhas. Em nome do desmatamento e do extrativismo. Da desigualdade de classes. Da calma neo-liberal. Retrocesso. Em nome do sangue que ainda corre em nossas veias. Punho cerrado. Que deus é esse transmitido por emissoras televisivas? Que deus é esse homembrancoternoegravata? Os Dez Mandamentos. Deus sentado sobre uma nota de dinheiro. Peles negras e mulheres acorrentadas pelos pés. Eles matam quem é diferente. Você sabe. Assistindo pela televisão ou pelo celular. Você sabe, cada sim é uma sentença. E os números que galgam o placar remetem a uma partida de futebol. É um jogo, eles sabem disso. Trocadilhos sem sentido e a expectativa. No toca-discos do conjugado toca Elis Regina. Caía a tarde feito um viaduto. E esse viaduto vermelho desemboca num engavetamento. Ouvidos comprimidos com o tilintar impaciente do garfo sobre a louça. A comida caiu mal ou foi o dia? Seus olhos cor-de-sol desabam num céu de tempestade. Eu não quero ir pra casa sozinha. Não quero ver isso sozinha. Será que algum de vocês está vendo? Estamos vivendo tempos difíceis. Palavras óbvias de quem não consegue entender. Como? Diante dos nossos olhos, isso é um absurdo.
Mar de patos amarelos sobre o gramado do congresso. Uma quadra de vôlei em que o futuro é rebatido na indolência organizada da burguesia. O país dividido em pedacinhos. Como eles tem coragem? Um turbilhão de informações que agridem o cérebro e confundem. Manipulação. Será que eles não se dão conta? Uma pedalada fiscal que em nenhum outro governo seria motivo de impeachment. Não, isso não é. A primeira mulher presidenta do Brasil. Vergonha. Vergonha de que? Busco nos seus dedos um abrigo enquanto o copo de cerveja esquenta apoiado no chão da sala. Mãos que se enlaçam para depois se soltar, suando frio na palma. Eu não vou conseguir assistir isso parada. Mas não tem o que fazer. Pela janela se ouve o chiado das televisões. Murmurinhos insistentes que pipocam xingamentos. As trombetas do apocalipse são fundos de panelas espalmados por colheres. Isso tá errado. Isso não pode estar certo. Despregam-se lágrimas do meu rosto. Uma estrondosa chuva de rojões comemoram um dos maiores golpes a nossa democracia. Movimento meticuloso, passar despercebido até que não haja mais volta. Estivemos distraídos diante das janelas embaçadas. Hoje eu choro, e o silêncio das lágrimas cai como um grito de protesto em meio a tanto estardalhaço. Isso é um golpe, não um impeachment. Isso é um golpe, não um impeachment. Isso é um golpe, não um impeachment. Um golpe”.

Foi em nome do pavor de Dilma Rousseff que o golpe recaiu como um lastro de tortura. Uma ameaça a democracia se revelava, e o Estado, cujos órgãos são responsáveis em manter segura a Liberdade democrática, se manteve omisso. Vimos (e seguimos vendo) o Estado agir contra a Liberdade, coagindo indivíduos e a vontade coletiva de milhões de brasileiros e brasileiras. Após a contagem dos votos no segundo turno das eleições de 2018, ouvimos no discurso do então eleito presidente Jair Bolsonaro (sim, o mesmo que ao votar sim, disse o fazer em homenagem ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra), uma peculiar defesa a Liberdade:
Nosso governo será formado por pessoas que tenham o mesmo propósito de cada um que me ouve neste momento: o propósito de transformar o nosso Brasil em uma grande, livre e próspera nação. (...) Liberdade é um princípio fundamental: liberdade de ir e vir, de andar nas ruas, em todos os lugares deste país, liberdade de empreender, liberdade política e religiosa, liberdade de informar e ter opinião. Liberdade de fazer escolhas e ser respeitado por elas. (...) Como defensor da liberdade, vou guiar um governo que defenda e proteja os direitos do cidadão que cumpre seus deveres e respeita as leis; elas são para todos. Porque assim será o nosso governo; constitucional e democrático.
Que liberdade é essa, senhor presidente? Como se pode falar em liberdade se há pessoas que não se sentem livres? Apreensivas em seus corpos, por serem quem são, por viverem onde vivem, essas pessoas durante e após as eleições sentem medo. Cada vez mais medo. Por medo de falar, silenciam-se. Por medo de serem agredidas, reclusam-se em suas casas, estando cada vez menos presentes em espaços públicos, locais esses que durante muitos anos já não lhes era permissivo estar. Ao andar pelas ruas de seus bairros, espreitam, não caminham, pois a bala não tem endereço, mas ação da polícia e do exército tem corpos marcados. A Liberdade, conceitualmente é intrínseca ao sujeito, mas em plano objetivo, o que vemos é uma retirada de direitos, uma liberdade negativa. E sentimos na pele o esvaziamento da palavra Liberdade.
Admito que, pessoalmente, me doeu ouvir a palavra Liberdade sendo proferida por ele. Pra mim, a maior ofensa foi essa. Um sacrilégio com a palavra Liberdade em tantos âmbitos... Como um sujeito assumidamente autoritário, que dá respaldo simbólico e afirmativo para as ações violentas que estão acontecendo em todo o país, inclusive para as que aconteceram em seu nome, ousa proferir a palavra Liberdade? A partir do momento em que pessoas são atacadas, assassinadas, agredidas, intimidadas por outras pessoas (essas que agora se sentem representantes do poder eminente advindo de um governo autoritário, classista, racista, heteronormativo, falocêntrico, imersas em mecanismo de recalque delirante diante de temas que ainda hoje são considerados tabus na sociedade, como igualdade de gênero, igualdade racial ou liberdade afetiva), não posso mais dizer se vivemos em Liberdade ou não. Quando o ódio se institucionaliza, as questões dos direitos fundamentais à humanidade tornam-se inferiores.
Eu falo sendo um daqueles que tem medo. Sou uma daquelas pessoas que tem sua voz silenciada pelo ódio. Esse que contido, mantinha-se velado em pequenas intolerâncias antes do primeiro turno, mas agora gerador de embates e exclusões, desponta como um dos mais fundamentais instrumentos fascistas dentro da sociedade. A livre circulação das palavras é uma característica da democracia moderna, mas estamos no meio do tiroteio e as palavras são os projéteis. Perdidas buscam reencontrar a sua força. Quando esvaziadas, o ser humano, sendo esse animal ficcional, constituído pela substância mais perigosa de todas, frustra-se e busca no gesto a sua satisfação: a comunicação. Se pensarmos na perda de significação e potência das palavras, percebemos uma sintomática para uma doença ainda mais grave: fascismo e fundamentalismo religioso. Acompanhados de um desmonte da educação e de um ataque à diversidade identitária, que por si só, é um marco cultural brasileiro, podemos perceber um plano de reconstrução social, apagando a memória e a existência de um período democrático. Estamos vendo a demonização desses corpos outros, não sulistas, não brancos, não masculinos ou não submissos. O fascismo é um regime de exclusão, e em consequência desses fatores, temos o sangue. O sangue de muitos corpos periféricos, invisibilizados e precarizados em direitos.
Enquanto estrutura de poder, o fascismo utiliza-se de uma ideologia viril e machista para justificar suas ações, enquanto tem na disseminação do ódio uma ferramenta de convencimento e domínio, inclusive por este permitir poucas variações em sua forma. Carente de nuances, facilita o projeto higienista de homogenização da sociedade. E o movimento que vem se instaurando no Brasil, já deixou claro contra quais corpos políticos seu ódio se direciona. É uma política contra gêneros, racial e sexual. As vítimas são as mulheres, exatamente aquelas que se levantaram em setembro para dizer #EleNão. São as diversas tribos indígenas. São os homens e mulheres negras. São as travestis e transsexuais. Os homossexuais. As pessoas pobres. Todas aquelas que são condenadas por um certo Deus da Universal.
A exaltação da figura do homem, a ode às suas características consideradas viris, que no Brasil veio em conjunto com uma rememoração deturpada de regimes militares, se estendeu até aos jargões utilizados entre os apoiadores do retrocesso. Ao se tratarem como soldados, eles evocam uma causa maior, e equiparam suas subjetividades políticas às de um pelotão. Prontos para o combate, sob a ordem do capitão. Em seu capítulo “Virilidade Facista”, Johann Chapoutot (professor de história contemporânea na Universidade Sourbonne París IV), vai analisar os mecanismos de reconstrução de uma identidade masculina pautada na virilidade durante períodos totalitários. O “novo-homem” que se busca é criado através de conceitos de exclusão de tudo o que se é considerado “feminino”, com seu corpo sempre posto para a guerra. Uma virilidade pouco emotiva, voltada apenas para a “fraternidade”, seu conjunto de companheiros de batalhas, que puros, avançam nos “altos” ideais da pátria. Para Chapoutot:
“A virilidade fascista não se define, no entanto, somente pelo enfrentamento, sobretudo banal e tradicional entre homem e mulher. (...) A virilidade é construída por uma série de oposições nítidas e claras: o homem não é a mulher; o ariano não é o judeu; etc. Definir a virilidade é, portanto, em primeiro lugar, excluir antíteses supostas e postas do ser masculino - devendo o homem ser suficientemente inteiro e firme para que ele próprio saiba excluir: excluir o feminino e o de outra raça”.

Nas eleições de 2018, o combate se deu nas redes sociais, mas também nas ruas. Elegeram o candidato cujo avatar era um fuzil. Nos dias seguintes vimos as consequências. O ódio tomou corpo e vestiu seu uniforme verde-amarelo-camisa-da-seleção. As pessoas agredidas, em sua maioria, faziam parte dos grupos citados acima. Diante da afirmação machista e feroz desse novo governo, percebemos uma ode à frágil e temerosa virilidade do macho branco heteronormativo. Esse homem que vinha sendo destituído do seu abusivo poder, reclama sua ressurreição por meio de mentiras e palavras vazias. (E o pior de tudo, com a eleição de Jair Bolsonaro, consegue).
Para lidarmos com essa situação (e talvez revertê-la) é necessário recriar significado e potência com as palavras. Inicialmente podemos jogar a partir de antônimos. No caso, o contrário da palavra exclusão. Criando novas metáforas, podemos deixar o ouvido aberto, aprendendo a re-conhecer a voz daqueles que secularmente foram silenciados. Rever as bases das nossas relações, da nossa própria lógica de ser-pensar-agir. Precisamos recuperar essas histórias por anos em sangue e silêncio apagadas. E criar, em coletivo, uma nova voz para as palavras quais seus significados deixamos perder. Uma prova de que isso é possível, foi o movimento #ViraVoto, ainda durante o período eleitoral em outubro de 2018, onde milhares de pessoas se dispuseram a conversar sobre política. Dispostas a ouvir, souberam se comunicar e conseguiram provar que o diálogo amplo e edificador ainda é possível. E é só a palavra União que vai ser capaz de nos manter vivos no ano que segue.

 

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