O Chá das Cinco

R. Duccini

À noite, enquanto arrumamos nossas coisas para mais uma mudança, encontro sua agenda do ano passado, jogada sobre a mesa da sala. Perdida numa bagunça de maquiagens, papéis discos e fios elétricos. Toco a capa preta texturizada em xadrëz com letras douradas escrevendo: 2018. Delineio suas bordas com as pontas dos dedos, como se fosse um gesto mágico. Uma agenda tão pequena quanto o conteúdo que carrega. Sou movido por uma curiosidade travessa em desbravar os segredos dos seus e dos nossos dias compartilhados. Procurando anotações do ano inteiro, encontro elas transcritas até março. Silêncio e depois agosto. Abro coincidentemente na página destinada àquela semana.
Confiro se você está dormindo, e ao me certificar, respiro aliviado em cometer essa pequena transgressão. Sento numa cadeira, como para diminuir o impacto. Isso não adianta, mas serve para enganar a vertigem na planta dos pés. Eu evito fixar os olhos nas linhas marcadas pra cada dia. Até que baixo as vistas ao final da página e inevitável encontro as datas: 23 de março - “Inauguração: O Lugar”; 24 de março - “Festa das Minas. Depois Jantar”; 28 de março - “Formatura”. Dia 31 de março, está grifado com o meu aniversário. Depois disso, é uma repetição cortante de pautas vazias até o mês de agosto, quando nos mudamos para o Rio de Janeiro.
Vou à cozinha e ponho uma água para ferver. Nosso chá nunca foi de se beber, mas mantinhamos a tradição que ela gostava de importar dos meses em que morou em Londres. Às cinco horas reuniamos os cinco em círculo e dividíamos, sentados atrás das portas do teatro, a erva e as ideias. Compartilhamos planos em que diziamos ser tudo sagrado. E talvez, de fato, tudo seja. Naquele momento conseguíamos ver o trânsito divino no nosso cotidiano de pequenas lutas diárias e tédio. Eu queria ter ficado com a sua parte na peça, mas depois que ela morreu, não consegui mais ensaiar o nosso projeto. Depois que você morreu… Soa difícil falar isso assim, logo no terceiro parágrafo. Esse não é o punch line do conto, mas talvez seja o fato mais importante: a morte.
Aquele dia foi especialmente bom, ainda devo ter anotações minhas perdidas em forma de poema sobre a noite em que consagramos O Lugar. O Poeta observa e canta. O Herói, no caso, as heroínas agem. E as três moiras tecem seu fio de aranha tecelã sobre nossas cabeças, que a qualquer momento podem rolar ladeira abaixo até o fim do precipício. Almoçamos juntos, eu, ela e Rita. Cantamos no almoço a canção homônima do Chico Buarque, e como na canção, ela levou seu sorriso, e no riso dela o meu assunto. Levou junto com ela o que era seu de direito, e nos deixou aqui, ancorados à vida com olhos lassos de lágrimas secas.
Seu nome era o fim do outono no hemisfério sul, como também eram suas cores. O mês que antecede o inverno e premedita o equinócio. Mas no hemisfério norte, era o fim da primavera. May, você era uma estrelinha de papel emaranhada no arco-íris, um colibri nas mãos da cartomante. Lembro que poucos dias antes ela havia me perguntado o que eu era. Eu disse: força motriz, impulso, movimento. Eu era o início, a fagulha o ímpeto. Não lembro o que você me disse que era, e são nesses primeiros lampejos de esquecimento quando não consigo erguer equilibrada a bandeja e me sinto sozinho. Mesmo que dure apenas alguns segundos e eu tenha a sensação de que você me diz resistência. Depois disso já não sou mais o mesmo e sinto o peso das ossadas no meu peito cederem a força da gravidade. Eu ainda vejo beija-flores furta cor quando saio para um passeio de bicicleta.

 

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