Quarentena 2

Denise Accurso

Hoje é o 235º dia de quarentena. O celular de Marcos toca pontualmente às 7h30min, como sempre. É quinta-feira e ele tem vários pacientes para atender.
Levanta com cuidado para não acordar Rosa. Infelizmente, sua mulher foi dispensada do trabalho no terceiro mês da quarentena. Tentara se manter produtiva, produzindo máscaras e aventais para doação. A necessidade, contudo, logo terminou. As novas regras estabelecidas no 121º dia da quarentena, restringindo completamente a possibilidade de circulação, inviabilizou a atividade.
Marcos teve um pouco mais de sorte. A maioria de seus pacientes aceitara continuar a psicanálise por via remota. Infelizmente, a maioria não estava conseguindo pagá-lo. Marcos optou por continuar atendendo mesmo assim. Havia alguns poucos pagantes. Esse dinheiro estava sendo suficiente, já que também havia cestas de suprimentos entregues em todas as residências da cidade e as contas de água e luz tiveram suspensão da cobrança.
Marcos estava ajudando muitas pessoas, mas estava tendo menos sucesso com sua mulher. Ela estava claramente depressiva. Não falava muito nem se mostrava entusiasmada com nada. Marcos estava cansando de ficar bancando o animador de torcida. Ele também tinha seus momentos ruins… esperava poder contar com Rosa nessas horas. A esposa, contudo, parecia ausente. Marcos esteve se esforçando, tentando alegrá-la, buscando coisas de que ela pudesse gostar, filmes, livros, músicas, conversas virtuais. Começou a perceber que ela fingia interesse por piedade. Parou de tentar.
Não sabia bem o que fazer. Estava convencido de que Rosa era a mulher de sua vida. Aquela Rosa da quarentena tinha pouco em comum com a pessoa com quem vivia há quase nove anos. A Rosa de antes ria muito, questionava tudo, adorava conversar, era fisicamente carinhosa, sempre buscando um abraço, um cafuné.
Essa Rosa de agora mostrava-se esquiva, parecendo incomodada com a presença dele. Marcos passava longas horas no escritório, atendendo pacientes ou simplesmente evitando impor sua presença, quando percebeu que a esposa preferia ficar sozinha. Ele se sentia profundamente solitário com essa companhia que parecia não desejá-lo por perto.
Rosa parou de deitar e de levantar cedo. Ele não sabia se era uma manobra para ficar com ele o mínimo possível ou não, mas respeitou a escolha da esposa e manteve seus próprios horários. Levantou-se naquela quinta-feira na hora de sempre. Marcos sempre gostara de uma certa rotina, mas agora estava já entediado também. A rotina é boa quando é possível quebrá-la de vez em quando. Assim, com os dias sempre iguais e invariáveis, era massacrante. Tomou seu banho e deu uma arrumada no banheiro. Outra mudança que notara em Rosa: a perda de interesse pela organização. Sua mulher nunca fora entusiasta das lides domésticas, mas gostava das coisas arrumadas, bonitinhas. O banheiro tinha velas decorativas, vasinhos, cristais, além daqueles objetos que esperamos encontrar, e tudo costumava ter o seu lugar. Agora, Rosa suprimira – e sem sequer falar com ele – a maioria dos objetos meramente decorativos. Pensara em perguntar o motivo, ou onde ela os guardara; optou por calar-se. Esse foi apenas um dos muitos novos silêncios criados pela quarentena.
Rosa parou de guardar as coisas. Marcos não tinha percebido o quanto a organização do apartamento dependia dela, até que ela simplesmente parou. Ela tirava a roupa da secadora e jogava em cima do sofá. Não tirava mais a mesa após as refeições. Só lavava louça quando não havia mais nada limpo, e mesmo assim, nunca terminava. Ele tentou fazer todas essas coisas que Rosa deixara de fazer, mas não teve a mesma eficiência. Ainda, sentia-se injustiçado, tinha menos tempo livre que ela e ainda lhe sobrava a maioria dos afazeres domésticos! Com o passar dos dias, deixou de tentar e adaptou-se àquela quase-bagunça que passou a dominar seu lar.
Só vira Rosa sair do marasmo no dia em que recolheram um corpo contaminado de alguém do andar deles. Ouviram os barulhos no corredor e ela correu para espiar pelo olho mágico. Olhou para ele, alarmada:
– São eles!
Marcos espiou e viu os removedores de corpos contagiados, com seu uniforme semelhante ao de astronautas. Ficou chocado em ver, ali tão perto, aquela cena que só tinha visto na TV e que lhe parecia muito distante. De repente, o vírus letal estava ali, em seu prédio, em seu andar. Voltou-se para Rosa, que, com ambas as mãos no rosto, parecia prestes a chorar. Abraçaram-se. Marcos gostou da sensação e percebeu que não lembrava da última vez que se tinham abraçado.
Ligou a cafeteira. Continuava comprando café, embora agora por cinco vezes o preço que custava antes do início da quarentena. Era um luxo do qual não abrira mão, comprava o produto, pagava a taxa de entrega, mas continuava tomando café todas as manhãs.
O cheiro invadiu a cozinha. Marcos pensou em ligar a TV. Decidiu tomar seu café em silêncio e preparar-se para o primeiro paciente, que seria às nove. Precisava fazer tudo muito lentamente para preencher seu dia.
Foi para o escritório, a peça mais organizada da casa. Era uma questão de necessidade, os atendimentos por vídeo expunham o ambiente a seus pacientes. Sentou-se diante do computador e o ligou. Acessou a agenda e a ficha dos paciente daquela manhã, apenas dois. Estudou-as minuciosamente. Ouviu os sons de Rosa levantando, o barulho do chuveiro, depois seus passos até a cozinha.
Nove horas. Aguardou a ligação do paciente. Nove e cinco, nove e dez. Resolveu ligar. Ninguém atendeu a chamada de vídeo. Marcos ficou desconcertado. Como isso era possível?
– Marcos! Vem aqui! Corre!
Ainda mais estupefato, Marcos sai do escritório, atendendo aos gritos da esposa que, diante da TV ligada, aponta para a tela com os olhos arregalados.
Lá está o Ministro da Saúde, explicando: “a vacinação iniciada não irá parar, segue 24 horas por dia até que cada cidadão esteja imunizado. Todas as normas restritivas de liberdade serão revogadas para cada pessoa após 48 horas da vacina. Com certeza há um ponto de vacinação próximo de você”.
Ambos trocaram olhares de incredulidade e alegria. Era aquilo mesmo? “procure um posto de vacinação imediatamente. Lojas, farmácias, supermercados, em todos os estabelecimentos há pessoas aplicando a vacina. Quanto antes você se vacinar, mais cedo poderá sair e rever seus entes queridos”.
Marcos olhou e viu, ali, de volta, a Rosa, aquela com quem se casara. Seus olhos brilhavam, ela sorria e segurava as mãos dele com força:
– Marcos! A vacina! Acharam a vacina! Está acabando a quarentena!
E gritou, a plenos pulmões:
– Acharam a vaciiiiiiiiiiiiiiiina!
A Rosa energética assumiu o controle da situação:
– Vou me vestir. Vamos tentar o supermercado. Se não der, continuamos andando até achar um posto de vacinação. Pega nossos documentos, Marcos.
Marcos não se mexeu.
– MARCOS! ACORDA! A VACINA!
Marcos pareceu despertar. Foi pegar as cédulas de identidade. Calçou os sapatos, que não usava há tanto tempo. Rosa irrompeu no escritório, usando jeans que dançavam em seu corpo. A blusa parecia grande também, o cabelo dela, reparou pela primeira vez, estava enorme. Mas ela estava linda.
A porta do apartamento foi aberta pra trás, como há muito tempo não se fazia. Deram as mãos e saíram.

 

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