Quarentena

Denise Accurso

Hoje é o 235º dia de quarentena. Laísa já nem sabe se está ou não entediada. Deve ser bem tarde. Deveria estender a mão, ver a hora no celular, mas pra quê? Que utilidade tem saber a hora inútil desse dia inútil?
Mexe as pernas. Vira para um lado e para outro. O corpo não encontra uma posição confortável. Já não aguenta mais aquela cama, mas sabe que se levantar vai ter que encarar o apartamento bagunçado, a pia cheia de louça, roupas jogadas em toda parte. Vai ter que se olhar no espelho e ver seus olhos inchados, a pele amarelada, os cabelos desgrenhados e sem forma, com as raízes castanho-escuras transformadas em caule, tronco, flor, e resquícios de louro surgindo na metade daquela juba.
Por que levantar? Tá, ela precisa ir ao banheiro. Precisa muito. Só por isso levanta. Vai ao banheiro. Franze o nariz com o mal cheiro que domina o ambiente. Faz muitos dias que não retira o lixo, mesmo que seja necessário apenas acondicioná-lo e colocar do lado de fora da porta do apartamento.
“Será que tomo banho”, pensa Laísa. Não tinha a menor necessidade. Nos primeiros dias, quando ainda tinha emprego, tomava banho diariamente, se penteava, até desodorante ela usava. Depois de alguns meses, quando sua empresa fechou, essa necessidade foi, aos poucos, desaparecendo. O dinheiro encurtou. Começou a depender de cestas de produtos que eram deixadas à sua porta, não sabia exatamente por quem.
Tentou vender o carro. Não houve interessados – afinal, se não se pode sair de casa, para que serve um automóvel? Naquele tempo, ainda achava possível manter uma certa normalidade. Queria manter as contas em dia, achar outro emprego. Mandou muitos currículos e chegou a fazer algumas entrevistas virtuais. Não conseguiu emprego.
O tempo foi soterrando suas esperanças de uma vida produtiva. Parou de tentar. Sem trabalho e sem buscar trabalho, já não tinha motivo nem vontade pra ligar o computador. Preferia a TV, bem menos interativa, e vegetava horas e horas diante do aparelho.
Não lembra quando começaram a colocar as cestas com alimentos e produtos de higiene. Certamente foi algo divulgado nos telejornais, mas ela não os assistia. Preferia novelas, programas antigos de auditório, filmes de época, coisas assim.
Tornou-se completamente dependente dessas cestas, e comia o que vinha ali. O abastecimento era irregular, e houve semanas em que faltava comida, ou sabão. Lembra que por duas semanas seguidas recebeu apenas três duzias de ovos. Foram as piores, já não aguentava mais comer ovos.
Laísa também não lembra em que momento deixou de falar com os vizinhos. No começo, conversavam pelas portas abertas, ou usavam interfone, wats, telefone. Depois isso foi parando. Ela não lembra quando, nem como. Não houve uma decisão, foi só uma coisa que parou de acontecer. Sabe que alguém morreu no seu andar, pois ouviu barulho, espiou pelo olho mágico e reconheceu os removedores de corpos contagiados, com seu uniforme semelhante ao de astronautas.
Outra coisa que ela não consegue lembrar foi quando perdeu a noção de dias da semana. Sempre que conferia no celular que dia era, ficava surpreendida. Nunca, nunca acertava.
A única coisa que ela realmente lembra foi a questão do lixo. Veio um aviso por escrito dizendo que daquele dia em diante era proibido circular pelos corredores do prédio, mesmo para tirar o lixo. Ficou chocada. Isso foi lá no começo, no dia 92.
Adiando o banho para outro dia qualquer, Laísa chega à cozinha. Na cesta dessa semana vieram várias barras de chocolate. Pega uma e começa a comer. Liga a TV. Lá está algum político com seus discursos inúteis e tediosos. Troca o canal. Não adianta. Aquela cara, que ela não sabe de quem é, está em todos os canais. Decide ouvir o que o chato tem a dizer: “repetindo, então, a vacinação iniciada não irá parar, segue 24 horas por dia até que cada cidadão esteja imunizado. Todas as normas restritivas de liberdade serão revogadas para cada pessoa após 48 horas da vacina. Com certeza há um ponto de vacinação próximo de você”.
Laísa não estava compreendendo muito bem. O cara da TV repetia e repetia: “procure um posto de vacinação imediatamente. Lojas, farmácias, supermercados, em todos os estabelecimentos há pessoas aplicando a vacina. Quanto antes você se vacinar, mais cedo poderá sair e rever seus entes queridos”. Mastigando o chocolate, Laísa tenta achar outro canal, mas é inútil, em todos está o chato mandando as pessoas saírem pra se vacinar.
Será mesmo? Olha pela janela e o que vê é uma cena totalmente inusitada: pessoas na rua! Caminhando, agitadas, apressadas, com uma espécie de urgência nos passos. Onde estão indo, afinal? Será essa história de vacina?
Resolve espiar pelo olho mágico. Vê um dos apartamentos com a porta aberta pra trás, e saindo dele, o casal que ali reside. Estão muito magros e cabeludos, mas perfeitamente reconhecíveis.
A voz na TV continua, hipnótica: “procure um posto de vacinação o quanto antes. Depois da vacina, você deve manter o isolamento por 48 horas e, depois, vida normal! Quanto antes você se vacinar, mais cedo abraçará seus entes queridos”.
Isso significava que Laísa tinha que tomar um banho, escovar os dentes, tentar pentear o cabelo e achar uma roupa que não estivesse fedendo. Parecia trabalho demais… Coçou a cabeça, indecisa. Tinha que se vacinar e esperar 48 horas. E depois? Parariam de chegar as cestas? As contas de luz e água voltariam a ser cobradas?
Procurou dentro de si a alegria, a animação. Não havia nada. Conferiu a geladeira e os chocolates. A comida dava pra uns quatro dias. Cinco, se economizasse. Não precisava fazer nada antes disso.
Sem mais nada pra ver na TV, voltou pra cama.



















 

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