divisão

Denise Accurso




Não havia mais condições de manter aquele casamento, mesmo sendo o terceiro de Flávio. Não sabia o que era, talvez ele não fosse feito para a vida em comum. Enfim, em nome dos filhos – e tinha vários, com todas as ex – o melhor era separarem-se e manter a boa convivência.
A questão financeira, porém, era um impeditivo. Não ganhava mal, mas tinha filhos, pensão, colégio, plano de saúde. Montara casa outras duas vezes e por duas vezes fora embora sem nada. Já não era tão jovem nem tão desprendido. Não sentia coragem de simplesmente sair com a roupa do corpo.
O apartamento de três quartos ofereceu a solução provisória. Num dos quartos, o filho do casal. A suíte ficou com a ex. Ele mudou-se para o terceiro quarto. Não era grande, mas era só seu. Isso era provisório, logo venderiam o apartamento e dividiriam o valor.
A venda, contudo, revelou-se difícil, os corretores alegavam que havia uma crise no setor imobiliário, que estava tudo parado, a cidade coberta de placas de “vende-se”. Começou a pairar no ar uma certa irritação, uma má-vontade de ambas as partes, situação que só piorou quando ambos iniciaram novos relacionamentos.
Era bizarro. Tinha todas as desvantagens de ainda estar casado, sem nenhuma das vantagens. Sua ex-mulher cobrava colaboração no serviço doméstico, se achando no direito de lhe delegar tarefas! Ele, que não tinha ar condicionado no seu quarto, pagava contas de luz gigantescas. E sua cerveja desaparecia misteriosamente da geladeira.
A gota d´água foi quando sua namorada voltou para o quarto com olhos arregalados, dizendo ter cruzado com um cara pelado no corredor. Não ia dar pra continuar assim. Decidiu fazer algo prático – dividir o apartamento.
Comprou um fogão de duas bocas e um frigobar. Dividiu a cozinha em duas metades, computando a pequena área de serviço. Uma metade ficou com a pia, a outra, com o tanque. Levantou uma parede de gesso acartonado e incluiu uma porta. Não era o ideal, ele teria que passar pela cozinha dela para chegar na sua, mas teria que servir.
O corredor era apertado, mas todos teriam que se virar, literalmente. Dividindo-o ao meio com gesso acartonado, tornou obrigatória a passagem “de ladinho”. Não havia espaço suficiente para uma pessoa caminhar normalmente.
O corredor desembocava na sala. Flávio deu continuidade à parede, dividindo também a sala em metades idênticas. Qualquer dos dois poderia sair do quarto e ir à “sua” sala sem ver o outro. A porta do seu banheiro ficou no seu lado do corredor; a do quarto do filho, no lado dela. O hall de entrada também foi dividido, mas não até o fim. Havia uma única porta de saída, e ele terminou a parede divisória de forma a permitir sua abertura.
Ficou muito satisfeito com sua obra. Sua ex-mulher, quando chegou e viu, pôs defeitos, como ele esperava, mas logo mostrou adaptar-se à nova realidade.
Suas vidas seguiram assim, paralelas, apertando-se pelo corredor, comunicando-se mais por meio do filho que por qualquer outra forma. De forma tácita, o uso da cozinha organizou-se de tal forma que nunca se encontravam. As visitas inicialmente riam do arranjo singular, depois se acostumavam.
Quase um ano se passou. Estava chegando o aniversário do filho.
– Pai… Quero falar sobre o meu aniversário.
– Sim, meu filho. O que você quer fazer?
– Uma coisa difícil, quase impossível, eu sei… Mas é a única coisa que eu quero. Não quero presente, festa, nada. Quero que eu, tu e a mãe passemos esse dia juntos.
Flávio coçou a cabeça, desanimado.
– E ela?
– Perguntou o que você achava, pai.
– Por mim tudo bem. Combina com ela e me avisa.
No dia seguinte, veio a resposta:
– Pai… A mãe topou. Disse pra eu fazer o que eu quiser. Eu quero passar o dia aqui em casa, com vocês.
Chegou o dia e combinaram de se revezar entre as duas metades do apartamento. Flávio fez a volta. Lá estava sua ex. Diferente, ela parecia mais alta… Não exatamente mais alta, mas mais altiva. Como uma rainha. O cabelo estava mais curto, deixando ver o contorno do rosto. O sorriso era natural, espontâneo, sem aquele permanente deboche. O olhar, mais direto, sem a censura constante. Estava leve, bem-humorada. Parecia outra mulher.
– E o seu namorado? Não se importou com esse arranjo?
– As coisas não deram certo. Estou solteira por enquanto.
Aquele jeito de falar inclinando a cabeça pra direita… não se lembrava de que fosse assim, tão atraente.
O dia passou maravilhosamente. À noite, saborearam juntos um espumante. O filho foi para o quarto, jogar. O ex-casal ficou ali, bebendo, conversando, ouvindo música…
Aquela noite um dos três quartos do apartamento permaneceu desocupado. Logo, em poucos meses, outras divisórias foram caindo…




 

voltar para página do autor