Voltar para casa

Jacira Fagundes

VOLTAR PARA CASA

“Estou voltando para casa”.

Naturalmente que ela não emitira a frase assim, com palavras. Mas era este o sentido. Guiada pelo instinto, num voo cego, voltava para casa. Porque escurecera, porque cansara, porque era a última viagem com a pequena carga, ou porque os filhotes pediam o calor de suas asas. Seria demasiado afirmar que vinha feliz? Que espécie de pássaro era aquele? Não saberia dizer. Certeza é que se tratava de uma fêmea, e isto justificava tudo.
A “casa” era uma pequena abertura na parede entre duas estacas de concreto no prédio em construção em que eu, da minha sacada, via avançar no espaço a cada dia. Naquele buraco, a passarinha construíra o ninho e abrigara a prole. E agora, na volta, ela encontrava o local coberto por uma espessa camada de cimento, provavelmente colocada durante sua ausência. Tomada de desespero, comprimia-se contra a parede soltando bramidos de pavor, asas e bico escancarados. Voltava e, por segundos, permanecia estática no ar para logo investir numa nova tentativa, as asinhas machucadas e o bico sangrando. Cabeças curiosas surgiam nas janelas dos apartamentos, unindo-se numa mesma agonia. Até que alguém, talvez mais habituado a urgências, tomava a iniciativa e saía em busca dos operários da obra.
A pequena ave cumpria a sina: voltava para casa.
Ao lembrar esta cena, fico a pensar o quanto nos é restaurador o regresso que fazemos ao lar todos os dias no nosso vai-e-vem de pessoas ocupadas. Voltar para casa é poder vestir a roupa folgada, encarar a falta de vontade, ler o jornal já sabedor das notícias, acariciar o cachorro, espichar-se no sofá da sala, brincar com o filho, cantarolar, demorar no chuveiro, tirar os sapatos, reencontrar o amado, partilhar o pouco e o muito, dividir o cobertor e sentir-se entre amigos.
O caminho que se percorre ao voltar é muitas vezes exaustivo. O percurso costuma incluir uma passada na farmácia, uma ida ao supermercado, o atropelo de um encontro casual, o agendar de um horário com a manicure, e outras tantas pendências. E, para não fugir à regra, o ônus do congestionamento no trânsito. A impotência tende a vencer e prevalece a sensação de que a distância é intransponível.
Há os que retornam derrotados e não conseguem livrar-se de todo esse peso. Mas como é salutar poder sentir outra vez as fragrâncias, de novo ouvir as vozes, tocar nos pertences, retribuir os olhares, lamber as crias, pronunciar palavras verdadeiras neste reduto tão nosso: a casa de cada um. Não necessariamente o prédio, a construção sólida, a parafernália eletrônica, a potência de milhares de waths oferecida pelas caixas de som. A casa pode ser, para muitos, o casebre, o galpão, o albergue, o orfanato ou a clínica de repouso. Mas em todas haverá de habitar, além de nós, o riso, a paz, a harmonia, a confiança, a cumplicidade, a estima, o entendimento e o respeito aos silêncios, às dores e às misérias de cada coração.
Hoje contamos com a fidelidade de um celular. Quem de nós já não fez ligação para os seus durante o trajeto de volta, buscando acalmar, dar indicações do itinerário, enfim, encurtar a distância através destes aparelhinhos tão dadivosos e que nos fogem à compreensão? Neste nosso mundo cheio de perplexidades, de tanta gente de miolo mole, bem que deveríamos torcer os dedos enquanto asseguramos que, sim, estamos voltando para casa. Como eu fiquei na torcida em razão da passarinha.
E hoje, vivendo em isolamento, num tempo de ameaça avassaladora em todo o planeta, mais ainda sentimos a casa. A nossa casa, qualquer casa, constitui, neste momento, o abrigo e a possibilidade de segurança e, com fé, de salvação.
Fiquemos em casa. Por cada um de nós. E por todos nós.










 

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