A Abdução de Vanessa

Gilmar Caldas Peres

Prestes a entrar no palco, Vanessa fazia os últimos retoques no minúsculo camarim individual. Os itens pessoais jogados de qualquer jeito num armário e cadeado enferrujados. Terminou de passar o creme em cada curva. Com um pé sobre a cadeira, olhou para o espelho de parede, vendo os cabelos encobrindo parte do rosto, endireitou o corpo e girou admirando a si próprio. Baforou um perfume importado no dorso, no pescoço e um pouco no antebraço esquerdo, esfregando-o com leveza no outro em seguida. Passou batom vermelho pelos lábios, destacando-os no rosto meigo. Retirou com o dedo mínimo os excessos de lápis nos cantos dos olhos de jade e com o da outra mão, um pouco de batom dos dentes, ajudando com a ponta da língua em breve sucção. Uma última olhada no espelho e pronto.

Alguém lhe alcançou um casaco longo, ela fechou dois botões, deu um nó fácil no cinto, colocou luvas compridas, ajeitou o cabelo liso, e aguardou pelo chamado. Era pura concentração e não gostava de ser importunada naquele momento. O DJ falou ao microfone “Agora, com vocês, a poderosa, deliciosa, fantástica, Vaaanneessa Spearss”.

Com passos meticulosamente planejados, como uma modelo na passarela, entrou no pequeno palco, olhando firme o horizonte. Varreu o local com uma expressão séria e em seguida deu um sorriso contagiante para uma mesa. Simulou gostar do que ouviu, abriu ainda mais o sorriso, repetiu a varredura pelo lado oposto à anterior e andou bem devagar. Abaixou-se em um canto, ameaçou tocar o queixo de um babão, mas virou-se rapidamente, dançando ao ritmo da música sensual. A boate enlouqueceu.

Um canhão de luz seguiu seus movimentos num ambiente escuro, distorcido por luzes coloridas no segundo plano. Cada um ensaiado à exaustão e planejado meticulosamente. Parou no meio do palco e desfez o nó em volta do casaco, depois os dois botões. Abriu uma das partes e mostrou o corpo. Gritos e assovios vieram de das mesas. Virou-se de costas, desnudou os ombros com a cabeça para trás no seu lado direito. Mais gritos e assovios. Deu um passo para frente e o casaco caiu inteiro das costas, deixando à mostra o corpo curvilíneo. Virou-se para a plateia e foi dançando até o canto esquerdo. Tirou uma luva, passando-a pelo rosto de um expectador. Com leveza e habilidade, foi até o lado oposto e fez a mesa coisa, em movimentos diferentes. Agora, estava apenas com o biquíni, salto alto e algumas jóias brilhosas. Os frequentadores exaltavam. Dançando, dirigiu-se ao fundo do palco onde havia uma barra de pole dance. Rodopiou algumas vezes com desenvoltura, acelerando ritmo e dificuldade. Conhecia os movimentos sem perder a delicadeza, sensualizando cada gesto e expressão. Alimentando fantasias no público, inclusive das mulheres, causando inveja e admiração entre as colegas.

Num dos movimentos, ficou em pé na barra, segurando-se apenas pelas coxas e pés, mostrando força e equilíbrio. Retirou a parte de cima do biquíni, deixando à mostra seios médios e empinados. Foi um delírio. Jogou-o para longe e voltou a dançar. Poderia ter sido ginasta, tamanha a habilidade. Resvalou até o chão e rebolou de costas, mexendo os quadris de forma impressionante, dobrando as pernas fortes, sem mostrar músculos. O micro biquíni desaparecia entre as nádegas volumosas. Tapeou a própria bunda e abandonou a barra, voltando para frente do palco em passos rápidos. A música acabava. De novo, varreu o local com segurança. Sorriu, sacudindo a cabeça para frente, deixando os cabelos sedosos, pelos quais tinha orgulho, cobrirem parte do rosto, destacando os olhos preciosos. Virou de costas e baixou a última peça. Gritos, assovios e aplausos. A cortina se fechou. Foi rápida para juntar notas jogadas em sua direção e outras junto à parte que caíram com a parte de baixo do biquíni. Pegou as roupas e correu para de volta ao seu cubículo como quem carrega frutas colhidas na hora.

Não havia glamour nos bastidores. Duas mulheres engalfinhadas eram separadas pela cafetina chefe, outra vomitava num canto, e um homem ordenava o revezamento das dançarinas, caso contrário, não receberiam a noite cheia. Ela abriu o armário, puxou um vestido curto, retocou a maquiagem, colocou o dinheiro ganho na bolsa, fechou o cadeado de novo e alguém bateu à porta de madeira que mais parecia um papelão, gritando.

- Vanessa, o pessoal da mesa três quer te ver. Vá correndo, eles parecem ter grana.
- Ok. Já vou.

Lembrou quem eram e não se entusiasmou. Embora tenha apenas passado os olhos, não despertou interesse. Detestava mesa com bêbados e homens sem classe. Apreciava boas bebidas, mas nem sempre. Não podia recusar muitas vezes porque andavam irritados com sua postura de escolher com quem flertaria e de raras vezes levá-los para o quarto. Algumas faziam qualquer coisa para arrastar clientes ao andar de cima. Ela, apenas de vez em quando. O dono da boate detestava sua postura. Porém, nenhuma outra menina causava o mesmo efeito na plateia. Por isso, relevava suas opções.

Vanessa entrou firme por entre as mesas, ouvindo elogios. Alguns nem precisavam, as expressões eram suficientes. Mantinha-se austera e esboçava um sorriso simpático, mas distante. Caminhou até a mesa indicada e percebeu quatro homens esparramados entre cadeiras e sofás de paredes. Pela quantidade de copos e garrafas, estavam bêbados. Algumas colegas sentavam nos colos, tocando partes íntimas, pedindo doses de bebidas. Deveriam ter dinheiro ou eram burros. Talvez os dois. Afastava esse tipo de cliente, mas não poderia deixar de ir à mesa, ainda mais com a boa gorjeta na calcinha posta por um deles. O líder do grupo sentado no meio, empurrou a mulher do lado para longe quando a viu chegando, hipnotizado com a presença. Deu duas batidas no sofá vermelho, ordenando que sentasse ao seu lado. Ela detestava aquele gesto.

- Você é muito gostosa. Sente aqui. Vou lhe pagar uma bebida. Garçom, traga uma champanhe – gritou.

Realmente era um homem sem classe. Para ele, qualquer espumante era champanhe, falava cuspindo e visivelmente alterado. Demonstrava estar drogado também.

- Perdão, eu não vou demorar. Só vim agradecer o mimo.
- Como assim? Acabei de chamar um champanhe.
- Pois é, hoje eu vim apenas para dançar. Não posso me envolver.
- Hum, sei. – ele resmungou de uma forma bruta. A expressão havia mudado. – Por acaso você está me evitando? Acha que eu não tenho dinheiro? Ou é boa demais para nós? – disse gesticulando e dando um banho de saliva no ouvido.
- Não, meu caro, nada disso. Hoje realmente não posso, entende? – disse ela com um sorriso frio, insinuando algum problema.

Ele olhou para os amigos a prestarem atenção nos dois. Poderia ser verdade, pensou. Desconfiado, falou.

- Bom, pelo menos essa você bebe comigo.

Vanessa não pode negar porque poderia parecer desfeita. Resolveu ficar até secarem aquela garrafa. Com a ajuda de algumas colegas beberronas, seria rápido. O homem ficou grudado nela e lhe comia com os olhos. Volta e meia passava a mão pelo corpo, enquanto ela tentava afastá-lo com delicadeza. Os seguranças da boate chegaram mais perto, antevendo algum problema, uma colega falou ao seu ouvido.

- Vanessa, não faça desfeita, esses caras são da pesada.

Gelou dos pés à cabeça, mas não cederia para aquele asqueroso. Pensou no que fazer e até o deixou tirar uma casquinha. Refutou à insistência, naquela noite seria impossível. “Quem sabe outro dia?”. Ele insistia dizendo que usaria camisinha e até gostava assim. Ficava uma situação cada vez mais difícil. Precisava arranjar uma desculpa e voltar para o camarim. Caso fosse embora àquela hora, talvez só recebesse metade referente ao valor do Show. O objetivo da boate era fazer os clientes gastarem. Não era uma estrela para ter privilégios. Outras mulheres também se apresentavam e reclamavam das regalias dela. Não conseguiria ficar muito tempo entre aquelas companhias. Afirmou não poder beber álcool e negou a espumante, oferecendo para as colegas gulosas. O homem se enfureceu, xingando uma delas, expulsando-a da mesa. Vanessa repetiu que não poderia beber naquele momento por causa de seus problemas. Alguém lhe deu uma garrafa com água, para não fazer desfeita, colocou num copo e bebeu. Sentiu algo estranho, e percebeu no olhar do companheiro de seu pretendente: a água estava batizada.

- Mil desculpas. Preciso ir ao banheiro.

O homem fez apenas um sinal com a mão, como se a enxotasse. Embora a expressão fosse. Puxou uma mulher para o colo e falou idiotices, sempre seguidas por gargalhadas dos companheiros. Vanessa correu ao banheiro, meteu dois dedos na garganta, forçando o vômito. A cafetina veio reclamar do comportamento. Precisava dar mais atenção aos clientes. Era a política da casa. Depois de vomitar um pouco, lavou a boca e retrucou. Em seguida, o dono da boate entrou no banheiro feminino sem cerimônia:

- Você sabe quem é aquele? Ele é perigoso, tem muita grana e manda matar por nada. Volte lá e dê atenção, ou melhor, dê tudo o que pedir.
- Nem morta. Eles me drogaram, sabia? A água deles estava batizada.
- Foda-se. Volte lá ou vá embora e nunca mais apareça aqui.
- Então pague o que me deve.

O homem tirou algumas notas do bolso, colocou em cima da pia molhada do banheiro sujo e disse para ela desaparecer. Vanessa contou as notas, não estava completo, mas não adiantaria reclamar. Pegou suas coisas, acompanhada pela cafetina e um segurança. Ouviu algumas ironias das invejosas, felizes com sua partida. Saiu pela porta de trás, dando num beco sem saída. Fazia um pouco de frio e precisava ir para casa, quando percebeu que estava completamente chapada. O vomito não resolveu o problema. Bebeu muita daquela água. Tinha sede.

Escorou-se numa parede tentando vomitar de novo. Não conseguiu, apenas sentiu as cólicas. O mudo girava sem parar e as luzes oscilavam em intensidade e brilho. Viu movimento no final do beco e temeu por ladrões. Ninguém a viu. Precisava caminhar até o início dele, onde era a rua em frente da boate e mais movimentada. Talvez conseguisse pegar um carro para casa. Ziguezagueou pela rua esburacada e com poças d’água. Os joelhos dobraram e caiu esfolando a palma de uma das mãos. Sentada na sarjeta, passou a ter visões de um mundo colorido e caótico. Momentos de euforia, outros de medo absoluto. O coração batia acelerado. Depois, parecia parar. Um rato atravessou a rua correndo, pareceu-lhe uma capivara gigante. Em seguida, se encantou com uma formiga. Quando viu uma barata, gritou alto e rastejou até a parede. Sentou-se escorada e com as pernas esticadas. Sentiu comichões tão grandes a ponto de se levantar em agonia. As alucinações eram intensas e absurdas.

Ouviu um zumbido e algo se aproximou. Parou, olhando para luzes de diversas cores piscando sem parar. O objeto de forma arredondada flutuava a sua frente e percebeu diálogos ininteligíveis. Tentava identificar em vão. Observou algo como um rosto humano descendo as escadas da nave de som sibilante. Um ser veio na sua direção, tinha um rosto ora quadrado, ora redondo. Braços magros perto dos ombros e enormes perto das mãos. Era muito mais alto e mais forte. Pegou-a pelo braço e enquanto outro abria uma porta, o primeiro a jogou no fundo de um baú. Ativaram a velocidade de dobra e partiram. Vanessa bateu com a cabeça e desacordou. Possivelmente pelo ar rarefeito.

Acordaram-na com tapas e água no rosto. Os alienígenas a arrastaram até um lugar ermo. Deveria ser o hiperespaço porque havia pouca luz e fazia frio. Ela parecia entender um pouco as conversas, embora não identificasse a língua. Como poderia, se nunca conversou com um aliem? As risadas eram iguais as dos humanos da boate. Jogaram-na numa espécie de sofá fedido, agarraram-na com força e arrancaram suas roupas. Nem tentou reagir. Nada poderia deter a loucura daqueles seres desprezíveis. Fechou os olhos, com um mundo sujo e injusto rodopiando à volta e sofreu a brutalidade lasciva. Por um bom tempo, serviu como um brinquedo, como um objeto de prazer. Foi invadida e humilhada de todas as formas. Só lhe restava sobreviver e mais nada. Agradeceu pela chegada da absoluta inconsciência.

- Moça, moça. Acorde. Você está bem? Uma ambulância deve estar chegando para lhe levar ao hospital.

O sol alto queimou as pupilas de um rosto desfigurado. O corpo doía e as partes íntimas ardiam como nunca, com sangue e hematomas espalhados, inclusive entre as pernas. O policial passava um rádio para a central. Ela não conhecia o local onde a jogaram. Tentou em vão se levantar. Alguns curiosos debochavam por perto. Ele voltou perguntando sobre a ocorrência.

- Fui abduzida. Os alienígenas me sequestraram e fizeram experiências terríveis comigo.
- Sim. Identificamos a placa clonada da nave espacial que alguém nos informou. Foi roubada no município vizinho.

O experiente policial fez uma fisionomia enfadonha, olhou para a pouca roupa dela e voltou para o rádio atendendo à central.

- Qual o seu nome? – perguntou de longe.
- Vanessa.
- O verdadeiro. Nós não estamos brincando moça.

Ela não conseguiu conter as verdadeiras emoções entre contradições e reflexões sobre si mesma. Os aliens não teriam queimado suas pernas com pontas de cigarros, nem usariam um carro roubado. Embora o modo como a trataram não fosse humano.


 

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